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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

terça-feira, janeiro 03, 2006

PERSONAGEM: Salve, cirandeira Lia!
Poucos a viram ou sabem dançar o ritmo. Mas o País todo ouviu o refrão que a tornou uma lenda

Carlos Marchi (*)

Majestosa, porte de rainha nagô, quase 1,80 metro, sorriso de enormes dentes alvos, brincos, cabelos dreadlock, toda de branco – lá vem Lia, do alto de sua vaidade, comandar a guerra de todo sábado à noite. E vem trazendo na mão o símbolo da sua resistência cultural, o microfone, onde despeja a voz poderosa para desfiar as cirandas da Ilha de Itamaracá, que ela fez famosa. O comando da resistência está acantonado no espaço Estrela de Lia, um privilegiado terreno sobre a Praia de Jaguaribe, com direito a lua espelhada no mar, onde ela reúne os jovens da comunidade pobre do Jaguaribe para dançar a ciranda de roda. A 300 metros, na praça do bairro do Pilar, centro administrativo do município de Itamaracá, reúnem-se os invasores. Seus hinos de guerra são o funk, o axé e o brega descarado, amplificados por dezenas de alto-falantes de bares e de carros estacionados com os porta-malas abertos. São dois mundos opostos – um, alimentado por uma típica e ingênua manifestação de cultura pernambucana, genuinamente acústica, pobre, sustentada pela insistência de alguns abnegados; e outro, massificado pelas mensagens e ritmos eletrônicos, de qualidade discutível e sem nenhum parentesco ou parecença com a cultura regional.

Mas Lia resiste, à luz da mítica aura que a faz conhecida de um País que nunca viu uma foto dela, nunca ouviu sua voz rascante nem sabe como se dança ciranda. Sabe, sim – aí o Brasil inteiro sabe de cor –, o verso-refrão da ciranda mor, que ganhou pernas e saiu galopando pelo litoral: Essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de Itamaracá. E assim Maria Madalena Correia do Nascimento, que é Lia como todas as Marias pernambucanas, merendeira da Escola Reunida de Jaguaribe, onde ganha R$ 750 por mês, mantém viva a ciranda-de-roda, sem patrocínio e sem herdeira.

A CIRANDA NASCE
A fama de Lia começou na década dos 60, quando a cantora Teca Calazans, pesquisando no município de Abreu e Lima, vizinho a Itamaracá, recolheu, num pequeno gravador, várias criações do mestre Antônio Baracho, compositor das primeiras cirandas. Entre elas, estava a Ciranda de Lia. A cirandeira Lia também aprendeu cirandas com Baracho, mas insiste em que a Ciranda de Lia nasceu quando, numa manhã de 1962, na Praia de Jaguaribe, ela solfejou a música para Teca, que depois colocaria a letra. De Paris, onde vive desde 1969, com alguns hiatos no Brasil, Teca abdica da glória de ser autora da letra de uma canção tão conhecida no País e revela que recebeu a Ciranda de Lia pronta de mestre Baracho.
Estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar,
Essa ciranda quem me deu foi Lia,
Que mora na Ilha de Itamaracá

Teca foi responsável, isso sim, por ter divulgado a canção pela primeira vez, ao incluí-la em seu primeiro disco, pelo selo Mocambo/Rozemblit, que tinha uma seleção de cirandas em um dos lados. Entre elas, destacava-se a beleza melódica da Ciranda de Lia, à qual Teca atribui um refrão ligeiramente diferente daquele que se canta hoje em Itamaracá:
Eu tava na beira da praia,
Ouvindo as pancadas das ondas do mar,
Essa ciranda quem me deu foi Lia,
Que mora na areia de Itamaracá”

Na areia da Praia de Jaguaribe, semi-analfabeta, aos 62 anos (que completa no dia 12 de janeiro), Lia – que viveu a vida inteira no bairro do Jaguaribe, uma comunidade pobre de pescadores no oeste da Ilha de Itamaracá – canta ciranda desde menina, exaltando os pescadores, as ondas, a lua. Atribuem a ela poderes espirituais – seria uma ialorixá. Fisicamente a especulação faz sentido: em tudo e por tudo ela ostenta um perfeito physique du rôle.

Lia ri franco, aberto – nem nega nem confirma. Pelo sim, pelo não, só canta com um colar de contas azul-claras e brancas, numa óbvia reverência a Iemanjá; no jardim de sua casa, próximo ao Estrela de Lia, o lugar mais nobre, acasalado por uma árvore, abriga uma efígie da mãe das águas cercada de pequenas lampadinhas que ela mantém acesas durante as noites. E confessa: é filha legítima de Iemanjá, por um lado, e amiga do padre, por outro. O sincretismo resolve a questão e ela cumpre à risca o trato feito com o cura: o espetáculo no Estrela de Lia só começa depois que acaba a missa noturna na igrejinha da Praia de Jaguaribe.

VIDA DURA
Sobreviver esse tempo todo foi uma dificuldade que Lia narra com resignação. Depois que casou com Toinho, seu marido até hoje, a vida foi muito difícil. Ela era famosa e requisitada, mas não conseguia ganhar quase nada com suas apresentações, até porque uma apresentação de ciranda tinha, necessariamente, de contar com um grupo grande de artistas, cuja locomoção era sempre cara. Quando Lia se casou, Toinho era porta-estandarte do maracatu Elefante, um dos grandes de Pernambuco, e se apresentava no reisado da Bomba do Eleutério. Ele insistia em arrastá-la para o carnaval e para os festejos do reisado; ela sempre recusava. Até que um dia cedeu e fez uma grande descoberta: o carnaval é um prazer quase igual ao de cantar ciranda.

Mas as coisas continuavam mal; sobrava alegria, mas faltava dinheiro. Só começou a melhorar mesmo quando, há mais de 25 anos, depois de muito pedir, ela conseguiu ser nomeada merendeira; continuou pedindo e ganhou o reconhecimento da prefeitura de Itamaracá, que a nomeou para um cargo honorífico, uma espécie de embaixadora da ilha que ela tanto ajudou a tornar conhecida. E não foi nomeada merendeira só de favor. “Ela é uma cozinheira de mão-cheia”, diz Beto, amigo que faz as funções de empresário da ciranda. Todos os que a cercam confirmam: Lia é a rainha dos frutos do mar. Seria uma sorte para os 270 meninos da escola onde ela trabalha, não fosse ter de repetir macarrão todos os dias, à falta de ingredientes mais saborosos. Durante muito tempo ela foi dublê de cozinheira e cantadora de ciranda em um restaurante da ilha que acabou fechando.

Hoje as duas funções lhe dão R$ 1.500 mensais, o que lhe permitiu juntar dinheiro para comprar a área onde instalou o Estrela de Lia, um espaço na beira da praia, entre coqueiros, dendês e cabeças-de-negro, com palco, algumas barraquinhas para venda de bebidas e salgadinhos e uma grande oca no meio, coberta de sapê e com piso cimentado, onde giram as rodas de ciranda.

O show começa sempre às 21h30 dos sábados e as coisas acontecem de forma surpreendente. Às 21 horas, o Estrela de Lia conta apenas com alguns gatos pingados; na hora marcada, já chegou um pouco mais de gente, mas nada que seja muito melhor que um rotundo fracasso. De repente, aos primeiros acordes da banda, surge gente de todos os lados, em grupos, como se esperassem apenas a senha para vir correndo e entrar na dança. Daí em diante, ninguém mais arreda pé até a 1 hora da madrugada, quando Lia encerra a encenação.

No Estrela de Lia ela instalou uma oficina de música, onde 15 meninos e meninas aprendem a dançar e a tocar ciranda. A escolinha parou há algum tempo por falta absoluta de recursos. Ela sonha com um espaço do Projeto Ponto de Cultura, patrocinado pelo governo estadual, que permite oferecer oficinas em barro e informática, além do ensino de percussão. Enquanto corre atrás de novos patrocínios, Lia fatura um extra transformando o Estrela de Lia em bar da praia durante o dia, alugando espaços para turistas. É um uso pouco nobre para o terreiro da ciranda, ela reconhece, mas necessário para equilibrar as finanças.

Lia agora aguarda o resultado de uma seleção que está sendo feita pelo governo de Pernambuco para saber se será um dos personagens do projeto Registro Patrimônio Vivo, que premia com uma pensão mensal artistas e grupos pernambucanos que tenham contribuído decisivamente para a cultura regional. Não será difícil para Lia, que vive há 40 anos na memória do povo brasileiro, ser reconhecida como uma referência da cultura pernambucana, até porque ela já recebeu, em 2004, a condecoração maior, a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura.

CORRENDO MUNDO
A cavalo na fama, Lia correu mundo. Cantou em Paris e Berlim. Viaja muito pelo Brasil e em todos os lugares a referência é sempre o refrão que a identifica e à ciranda. Mas lugar nenhum a impressionou tanto quanto o Rio de Janeiro, onde se sentiu como se estivesse “em casa”. “Lá tive vontade de ficar nas praias cantando ciranda para os cariocas dançarem sem parar”, relembra, saudosa. Ninguém ia estranhar de vê-la assim: quando canta, Lia lembra duas cariocas singulares – Clementina de Jesus, pelo porte, e Carmen Costa, pelo timbre.

A cirandeira Lia, que tentou ser mãe quatro vezes e perdeu as quatro, não tem herdeiras, nem na vida nem na ciranda. “Desisti. Era porque Deus e Iemanjá não queriam”, diz entre a desolação e o conformismo. É curioso que Lia, sem filhos e sem herdeiros na arte, consiga atrair predominantemente jovens adolescentes do bairro do Jaguaribe, mais meninas que meninos, aos espetáculos do Estrela de Lia; nenhuma delas, no entanto, se interessou em aprender a cantar. E como vai ser? “Não sei. Nem me importo. O que me importa é que, se você fizer um show de axé, esses meninos vão dançar como se fosse ciranda”, se gaba. E, do palco, ela desafia, cantando os versos de Edu Lobo: Cirandeiro, cirandeiro ó, a pedra do seu anel brilha mais do que o sol. A garotada sabe de cor e acompanha a canção inTeira, sem errar um verso.

Muitos dos jovens não cantam, mas se esmeram em inventar passos para atualizar a evolução da ciranda. Todos cantam junto com Lia as canções que Baracho compôs há muito, numa adesão que transpõe épocas. Embora a dança seja ainda tradicional, em roda girada no sentido anti-horário, todos de mãos dadas, os adolescentes criam movimentos cheios de ginga nova e acrescentam passos para trás, que a ciranda original não tem. A composição da roda não se preocupa em intercalar homens e mulheres; as pessoas entram na roda sem questionar a quem vão dar as mãos. Por alguns momentos, chega a ser exótico ver inquestionáveis machos nordestinos dando as mãos a outros homens, ignorando possíveis preconceitos e fazendo prevalecer a diversão ingênua e alegre.

Lia ainda abre o leque: em suas apresentações, não canta apenas cirandas; também inclui cocos. E, curiosamente, nos cocos, de marcação completamente diferente, bem mais apimentada, muitas pessoas continuam dançando a roda da ciranda, embora os mais hábeis arrisquem passos semelhantes à capoeira, originais na dança do coco. Ela também canta pastoris, maracatus e, se pedirem, cavalos-marinhos e até frevos, sem limitações; e ainda divide o seu palco com dona Célia Coquista (de “coco”), que aos 70 anos exibe a energia de um Jackson do Pandeiro redivivo, e com as Filhas de Baracho – Dulce e Biu (Severina) –, que interpretam as cirandas do pai.

Toda de branco, saia rodada com debruns coloridos, sandálias de couro cru, ornada por pulseiras, brincos e colares, Lia fecha sua apresentação depois da meia-noite, depois de desfiar várias cirandas que falam nela. Essa ciranda eu tirei de Lia, que não sabia que estava no seu olhar, diz uma; Eu sou Lia da beira do mar, morena queimada de sal e de sol da Ilha de Itamaracá, diz outra. E o refrão do fecho é de estrela: Adeus, meus amores, Lia vai dormir. Bons sonhos a guardem, rainha Lia das areias de Itamaracá.
(*)Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada no caderno Aliás, de 25/12/2005