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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

domingo, dezembro 11, 2005

ENTREVISTA: FRANCISCO ANTONIO DORIA


EXPORTAM-SE CÉREBROS. PERDE O PAÍS

O problema não é o apagão de energia elétrica, mas sim o apagão intelectual - um desastre capaz de interromper qualquer projeto de desenvolvimento

Fred Melo Paiva (*)

Francisco Antonio Doria já tinha se cansado dos discursos sobre a perda de competitividade das indústrias brasileiras. Foi então que, diante do espetáculo dos que não cresceram, pediu a palavra: "Temos tido um sucesso inesperado e certamente não desejado em outro aspecto de nosso comércio exterior: a exportação de cérebros". Ministros franziram a testa, empresários e sociólogos cruzaram olhares de interrogação. Francisco foi em frente: contou primeiro a história de um doutor em física que foi dar aulas nos Estados Unidos, já tem o green card e deve se tornar em breve um cidadão americano. Depois fez um relato pessoal da frustrada tentativa de conseguir uma bolsa para seus estudos na área de Lógica. Terminou lembrando um personagem histórico que de tão esquecido ninguém na sala dava notícia de sua existência: "Temos um precedente trágico. Peter Medawar, o Prêmio Nobel cuja cidadania brasileira o Brasil cassou. Trata-se de evitar, daqui a dez anos, um apagão intelectual que vai afetar a fundo o desenvolvimento do Brasil".

Francisco Antonio Doria, 60 anos, é doutor em Física pela UFRJ. Já foi, ele próprio, um cérebro tipo exportação - como pesquisador das Universidades de Rochester e Stanford, ambas nos Estados Unidos, resolveu os dois problemas matemáticos que o consagraram como um grande nome da ciência no mundo. Embora sua praia sejam os números, foi um dos fundadores da Escola de Comunicação da UFRJ nos anos 80, "quando sua proposta era a convergência entre exatas e humanas". É hoje professor emérito da universidade e pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Chico Doria vive em Petrópolis desde 1976, porque "matemática precisa de paisagem bonita". Gosta de ficção científica e volta e meia cita Guerra nas Estrelas - acha que esse pessoal acaba por propor questões no fundo importantes. Foi talvez com esse espírito que Chico tenha se insurgido na última reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão de assessoramento da Presidência da República apelidado de Conselhão. Na entrevista a seguir, ele explica sua teoria do apagão intelectual:

Existe realmente uma perigosa evasão de cérebros para o exterior?
Sem dúvida. Esse movimento começou no tempo de Fernando Collor, e o motivo básico é a compressão salarial nas universidades. Pegue um professor titular, aquele sujeito que geralmente é um chefe de pesquisa com muita experiência e que só pelo seu trabalho já está formando pessoas em volta dele. Antes da ditadura, esse professor tinha salário equiparado ao de um ministro do Supremo Tribunal Federal - e um status social correspondente. Hoje, um professor titular de universidade federal, se tiver começado a carreira imediatamente, estará ganhando, líquidos, R$ 4.000 por mês, talvez menos. Por outro lado, a Comunidade Européia oferece bolsas de doutoramento na ordem de 1.100 euros - ou seja, perto do que recebe o professor já em final de carreira aqui no Brasil. Então, se você é realmente bom e tem uma oferta no exterior, vai embora. É o que está acontecendo.

Além dos baixos salários, o que mais favorece a migração de cientistas brasileiros para o exterior?
As condições de trabalho no País. O sistema político brasileiro é absolutamente insensível ao que se faz aqui em termos de ciências. É o caso, por exemplo, do que acontece com a área de Lógica, que está sendo destruída. Não vejo má-fé nesse processo, mas uma cegueira total. O pessoal do CNPq - estou falando especificamente de seu presidente, Erney Camargo, e também de José Roberto Drugovitch, espécie de diretor-executivo - acha que Lógica é área secundária. Da mesma forma que não conheço uma porção de coisas que se faz na área médica, eles - que são responsáveis pela concessão de bolsas para pesquisas científicas - não sabem que da Lógica depende, entre outros setores, o da computação.

Esse já seria um dos motivos que fazem o País ser mais atrasado nesse campo do que, por exemplo, a Índia?
Sim. Quem faz a política científica no Brasil não percebe que determinadas áreas teóricas dão suporte a áreas aplicadas. Nos últimos cinco anos, uma série de pesquisadores em Lógica, gente de alto nível, tem tido bolsas recusadas ou cortadas -inclusive eu. Vou falar em causa própria, mas acho um absurdo que não tenha recebido um centavo do CNPq para editar um estudo sobre hipercomputação. É uma aposta segura, porque mais cedo ou mais tarde alguém vai construir esse supercomputador que irá colocar no chinelo todos os outros. O Brasil tem de ter um nicho de pesquisa nessa área. No entanto, riram de mim no parecer do CNPq, assinado por um comitê cujo processo de escolha dos membros nunca é muito transparente. Eles me ridicularizaram a ponto de dizer que minha proposta era arrogante e ambiciosa. Foram extremamente grosseiros. Isso mostra, sobretudo, que as pessoas que formularam tal parecer não têm capacidade de entender meu trabalho nem minha área de atuação - aliás, junte o currículo das três pessoas que formam o comitê e compare com o meu. Eu ganho. O desrespeito, porém, não aconteceu só comigo. Outros colegas foram surpreendidos com pareceres igualmente ofensivos. Até o grande matemático Newton da Costa recebeu comunicado em que dizem simplesmente que darão a ele a bolsa porque seria um absurdo recusá-la - mas, ressalvam, o que ele faz não tem a menor importância.

Qual a conseqüência dessas recusas e cortes de bolsas para a produção científica?
Não poderemos mais formar pessoal. Porque ninguém vai entrar numa área que não tem apoio de órgão oficial. Aluno promissor vai para área que dá bolsa, onde se tem futuro. Nós temos toda a condição de produzir teses interessantes, de propor muitos problemas. Mas, se a coisa não é valorizada no Brasil, por que ficar aqui? Se o aluno está interessado de verdade, ele vai embora.

Os países desenvolvidos estão interessados em acolher essas pessoas?
Vou contar uma história que responde à pergunta. Minha filha, Mariana, é engenheira química. Interessou-se por Economia Ambiental. Descobriu que a Comunidade Européia criou, no norte da Itália, um centro de pesquisa sobre Economia Aplicada. Ela se candidatou, fez a seleção - que é baseada simplesmente em currículo e entrevista - e está lá estudando com uma bolsa. A primeira peculiaridade, ela me diz, é que a língua das aulas e das provas é o inglês. Aqui isso é proibido por lei. São colegas dela um chinês, um vietnamita, uma paquistanesa e gente de todo o continente. O interesse, claro, é que se fixem por lá e ajudem no desenvolvimento da Europa.

Ela quis continuar os estudos no Brasil?
Sim. Mas disseram que a área dela, Engenharia, não era compatível com Economia. Lá fora, essa questão jamais foi levantada. Aqui, a compartimentação das áreas impede, por exemplo, que eu pegue um bom aluno meu que tenha feito Física e sugira a ele uma pós-graduação em Economia. No entanto, conheço vários pesquisadores do exterior que estão modelando processos econômicos em analogia a processos físicos.

Quais as áreas mais afetadas pela fuga dos pesquisadores?
As Ciências Exatas. Eu já estou muito velho. Mas, se estivesse na faixa dos 30 ou 40 anos, certamente estaria considerando a possibilidade de emigrar. E mesmo eu sendo velho, foi me dito no começo do ano por um colega do exterior que, se eu trabalhasse em modelos matemáticos aplicados a sistemas financeiros, teria para mim uma posição fora do Brasil. Estou pensando seriamente em me interessar pela coisa...

Quais os prejuízos dessa saída dos cientistas brasileiros para o exterior?
O primeiro ponto é o seguinte: c omo se forma um professor? Você pega um aluno talentoso e chama para fazer uma iniciação científica com você. Em geral, oferece uma bolsa para esse aluno. Aí ele vai se interessar pela área e começará a caminhar pelas próprias pernas. Fará mestrado e doutorado. Digamos que termine o doutorado com 30 anos e queira ir para uma universidade pública, onde irá encontrar um ambiente intelectual mais interessante. Nessa hora, ele vai se perguntar quanto estará ganhando com 50, 60 anos. E perceberá que no exterior as possibilidades são muito maiores, mesmo que ele não vá para uma universidade top. E vai embora. Agora, se a universidade está perdendo essa turma, quem vai dar aula daqui a dez anos? Além desse aspecto, veja, por exemplo, a questão da biomassa. Este é um país que recebe sol em todo o território, e portanto um produtor natural. Mas são os Estados Unidos que estão investindo furiosamente nis so. Aqui, era para ter programas prioritaríssimos nessa área, porque é óbvio que não vai existir petróleo para sempre. Mas, ao contrário, estamos perdendo competitividade - e talentos.

A política de distribuição de bolsas para pesquisadores piorou ao longo dos anos?
Antes era sem dúvida muito melhor. Primeiro, havia menos gente fazendo pesquisa e, portanto, pedindo bolsa. Depois, a coisa era mais informal - o CNPq acompanhava seus bolsistas a ponto de ficarmos amigos deles. Se havia uma recusa de bolsa, não era feita dessa maneira grotesca de hoje - havia também a preocupação em apontar um caminho para aquele estudante. Hoje em dia o processo virou uma coisa gigante, burocrática e ineficiente. Eles têm, por exemplo, um currículo padrão, o Currículo Lattes. A maioria das pessoas entrega para a secretária do departamento preencher. Quem não pode quebra a cara. O meu, por exemplo, está incompleto. Preencher um formulário do CNPq é, de resto, um processo infernal. E só é possível fazê-lo se você tiver computador com Windows. Um absurdo! Já vi muito pesquisador bom decidido a nunca mais pedir uma bolsa.


Existe uma política para aumentar o número de doutores no País, ainda que a qualidade desse pessoal seja questionável?

Isso acontece há muito tempo, porque é legalmente exigido das universidades particulares certo número de doutores em seu corpo docente. Como o País funciona em termos de papel e carimbo, então vamos produzir doutores para atender a esse mercado, ainda que não tenham qualidade para obter título algum. Se há uma coisa interessante nos Estados Unidos, é que lá eles não dão bola para papel, mas para a competência das pessoas. Nos EUA, um currículo tem nome, qualificação, título máximo e citações - uma pequena lista de quem citou um trabalho seu e onde apareceu essa citação. Você sabe que no Lattes não tem onde colocar citações a seus trabalhos? O mais importante não tem lá...

Diante desse quadro, qual o panorama da atual produção científica no Brasil?
Há picos isolados: gente muito boa trabalhando na ponta em uma porção de áreas, especialmente aquelas em que somos tradicionalmente bons - a Matemática é muito boa, temos ótimos físicos teóricos, há muito tempo que temos aqui uma medicina de vanguarda. Agora, não há massa crítica - na maioria dessas áreas, você tem dois ou três grandes nomes e uma massa sem o mesmo brilho desses dois ou três.

Essas pessoas despontam em razão de um empenho puramente particular, ou há alguma estrutura capaz de promovê-las a um nível de excelência?
Em uma ou outra área mais organizada - a Matemática é uma delas -, você tem uma rede de sustentação. Mas, de modo geral, são pessoas que brigam por si mesmas, que saem para a luta sozinhas, sobretudo contra a indiferença das pessoas.

O senhor fala da boa performance da nossa Matemática. O Brasil tem uma respeitada participação na área de exatas, não?
A matemática brasileira é muito boa - mas é um grupo isolado, o grupo do Instituto de Matemática Pura e Aplicada e alguns departamentos subsidiários. Há também alguns pequenos grupos de física que são muito bons. A Biofísica brasileira é outra área com notoriedade internacional. Para ciências mais aplicadas, a engenharia de petróleo do Brasil é maravilhosa - mas avançou quase que no tapa.

São áreas em que o apagão intelectual é ainda somente uma ameaça?
Não. Já é possível sentir seus efeitos. Na última reunião do Conselhão, falei de um físico teórico de 35 anos que no Brasil nunca teve bolsa - esse pesquisador trabalha com fundamentos da mecânica quântica, e está particularmente interessado em coisas que beiram a ficção científica, como por exemplo a discussão teórica sobre a possibilidade da desintegração do corpo humano e sua reintegração. Essa, como outras, é uma questão de ponta. É um físico que publica muito no exterior e tem currículo impecável. Está como professor visitante em Stanford, esperando uma oportunidade para ficar por lá em definitivo. Ele não faz parte dos grupos que citei, então suas chances com relação a financiamento de pesquisas no Brasil são bem menores. Não estou dizendo que tenha peixada nessas escolhas - faz parte do mecanismo que um grupo forte atraia para si uma grande parte do dinheiro. Agora, resta a quem não faz parte desses grupos duas saídas: abandonar a carreira ou ir embora do País.

O senhor falou da tecnologia de extração de petróleo - é um bom exemplo de parceria entre pesquisadores e a Petrobras. Por que não existem mais parcerias entre empresas privadas e universidades?
Digamos que um industrial brasileiro queira fazer uma grande doação para uma universidade, financiar algum tipo de pesquisa, ou mesmo patrocinar alguma cátedra, como é comum nos Estados Unidos. Do ponto de vista legal, não há um mecanismo que possibilite isso em nenhuma universidade pública, nem mesmo na USP, que é mais flexível. Enquanto isso, o orientador do meu doutorado recebeu convite para sair da Universidade de Rochester e assumir uma cátedra em Chicago. A universidade, desejando que ele ficasse, conseguiu o patrocínio da Kodak, que tem sede lá. Criaram então a cátedra George Eastman, homenagem ao fundador da empresa. E assim ele pôde ficar, com a obrigação única de dar um curso avançado a cada semestre - e sobre o tópico que quisesse. No Brasil, não temos uma lei como a Rouanet para ciência e tecnologia, alguma coisa que permita abater no imposto de renda eventuais doações. Valoriza-se a atividade artística, mas não a científica. É sintomático do que escreveu Mário Henrique Simonsen em seu livro Brasil 2001: "é um país de beletristas" .

O senhor arriscaria uma projeção do País para o dia em que aqui não tivermos mais nenhum pesquisador?
Voltaremos a exportar matéria-prima e importar manufaturados.

(*)Repórter do jornal o Estado de S. Paulo. Matéria publicada no caderno Aliás de 11/12/2005.