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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

terça-feira, dezembro 27, 2005

AÇÃO SOCIAL DE LULA DECEPCIONA ESQUERDA REGIONAL

Flávio Marreiro, de Buenos Aires (*)



O Brasil é o maior país da região, com o maior PIB (Produto Interno Bruto), com um emblemático presidente ex-sindicalista, que obtém sucesso na política externa, em especial nas recentes negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio). Ao mesmo tempo, o Brasil atravessa grave crise política, está sob uma política econômica restritiva, e não há, à exceção do Bolsa-Família, resultados visíveis da sua política social, quase três anos após a chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto. É esse segundo parágrafo que faz do governo Lula uma sombra para o futuro governo de Evo Morales na Bolívia (foto acima), que, como o brasileiro, fez discurso falando de "mudança" e "esperança". "Ouvi muita gente assustada no movimento social da Bolívia, da Colômbia. Diziam: "Não queremos um Lula, não queremos um traidor'", conta o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, da UFRJ, que visitou a região em agosto e teve conversas com Morales e lideranças camponesas.

A mesma ameaça de "roubo da mudança" apareceu no relato da vitória de Morales feito pelo jornal de esquerda argentino "Página 12". "Através do sistema de comunicação entre táxis, uma voz de homem celebra o triunfo de Morales. A voz diz: "Votamos pela mudança, e venceu a mudança. Viva Evo, o homem dos trabalhadores". Depois se escuta um riso, um Evo entrecortado, e a voz diz, agora com ironia: "Sempre e quando Evo não roube a mudança, como Lula fez no Brasil'".

Se para a esquerda intelectualizada do continente, refletida no jornal, e para parte do movimento social, a experiência do governo Lula é um engodo ou um elemento conservador na virada do continente à esquerda, o Planalto segue sendo um apoio buscado por todos os líderes, de Hugo Chávez a Néstor Kirchner ao próprio Evo Morales, principalmente como parceiro moderado, contrapeso do desgaste pelo não-alinhamento com os EUA de George W. Bush. "A boa relação do Brasil com os EUA, a ligação direta entre Lula e o presidente americano, George W. Bush, funcionam como uma espécie de "airbag", principalmente para o explosivo nacionalismo indígena", explica Teixeira da Silva. Lula, Chávez e Kirchner exibirão ao mundo sua sintonia em janeiro, quando terão nova reunião tripartite em Brasília.

AMÉRICA LATINA: Exaustão de modelo leva a êxito da esquerda
Para especialista, falta de reconhecimento da necessidade de universalizar serviços de qualidade ajuda esquerdistas

João Batista Natali (*)

Os sucessivos êxitos de candidatos das esquerda em recentes eleições latino-americanas refletem uma reação a duas tendências. A primeira é a estagnação, que já dura quase dez anos, dos mecanismos que procuram diminuir uma injusta distribuição de renda. A segunda está no esgotamento de um modelo recomendado pelo Banco Mundial e que consiste em dar renda mínima aos mais pobres, sem reconhecer a necessidade de universalização de serviços públicos de qualidade. É o que diz a economista e especialista em políticas sociais Lena Lavinas, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A América Latina, como um todo, está hoje mais pobre do que há dez ou há 15 anos?
Lena Lavinas - A Cepal informa que, em 1990, os pobres eram 48,3% da população. Caíram para 43,8% em 1997, e de lá para cá essa proporção não se alterou. O número de indigentes também caiu nesse primeiro período, de 22,5% para 19,6%, e, em 2004, estavam ainda em 18,6%. Ou seja, estamos numa década onde prevalece a estabilidade, inclusive nos números da pobreza e indigência. Já a desigualdade piorou na maioria dos países, como Chile, Argentina, Bolívia, Equador, Peru e Uruguai. Brasil e México são casos raros de leve declínio da desigualdade no período. Ainda assim, o Brasil é de longe o mais desigual. Em segundo lugar, segundo o Banco Mundial, agora vem o Chile.

E os programas sociais que muitos desses países aplicam?
Lavinas - Nos anos pós-Consenso de Washington, passa a prevalecer o paradigma da "gestão social do risco". Em lugar de manter um sistema de proteção social integral, auxiliam-se apenas os que estão em situação de risco comprovado, através da concessão temporária de mínimos sociais. Na Argentina, há um programa para adultos desempregados, no México, o "Progresa" já está em sua segunda etapa, com forte impacto nas áreas rurais. No Chile, criou-se o "Chile Solidário", renda mínima para 200 mil famílias. Mas quase nada se altera em termos de emprego ou mobilidade social, etc. Para melhorar, os latino-americanos estão emigrando.

Por que esses programas não são a solução?
Lavinas - Porque o antídoto não ataca a raiz do problema, a desigualdade, que está crescendo. Atenuar o grau de destituição dos mais pobres não significa promover inclusão crescente e sustentável, reduzir diferenciais de acesso, promover a eqüidade. Temos crescido pouco no continente. Estamos longe de superar nossa heterogeneidade estrutural. Para piorar o quadro, os governos latino-americanos deram as costas à universalização dos serviços públicos, como a educação e a saúde.

E o caso da Bolívia?
Lavinas - A eleição de Evo Morales é uma reação a um quadro de estagnação e de piora das desigualdades. Ele se elegeu com um programa que condena o modelo social residual. Lá está dito com todas as letras: "Refutamos a idéia de que o Estado deve atender só os grupos sociais que não podem assegurar sua própria subsistência". Ele ganhou com uma plataforma clara na área social: cobertura de saúde integral e universal, na direção oposta às reformas privatizantes. Ele recusa a crítica ao papel inoperante do Estado na provisão de serviços de saúde e educação. A palavra de ordem deles é "viver bem e redistribuir equitativamente a riqueza", e isso vai na direção da radicalidade perdida na década liberal. Programas de renda mínima para pobres, aliás, jamais foram a bandeira das esquerdas.

DEBATE: Ícones discutem o papel do mercado

A Folha pediu ao lendário economista Milton Friedman, símbolo da direita liberal, e ao cientista social Norman Birnbaum, reputado representante da esquerda dos EUA, que respondessem à pergunta: "A atual ordem econômica mundial influencia a aplicação de políticas na América Latina?". Leia a seguir suas respostas.

MILTON FRIEDMAN: Uma economia internacional mais aberta acaba reforçando a democracia, já que requer mais transparência dos políticos. Mas, quando estudamos a ordem econômica mundial atual, observamos uma situação complexa, pois, na prática, isso não ocorre por conta do forte protecionismo de algumas grandes potências. Porém também é errado culpar o mercado global pelas más decisões dos dirigentes de países em desenvolvimento. Não se trata de o mercado concordar ou não com as escolhas populares. Em momentos de incerteza, o mercado financeiro só infere que as conseqüências dessas escolhas não serão benéficas a seus interesses. Entretanto os povos latino-americanos continuam podendo eleger seus candidatos favoritos. Os brasileiros ou os bolivianos têm o direito de privilegiar um sistema de governo deletério para o mercado. Trata-se de uma opção legítima e merecedora de respeito. Por outro lado, a eleição de um candidato mais socialista ou coletivista é, irrefutavelmente, adversa para o comércio internacional. Mas os latino-americanos podem querer arcar com o custo de sua liberdade de escolha.

(Milton Friedman, ícone do pensamento econômico liberal contemporâneo, recebeu o Nobel de Economia em 1976).

NORMAN BIRNBAUM: Não tenho razão para acreditar que as eleições e os sistemas políticos brasileiros ou bolivianos não sejam democráticos. Mas, tendo em mente a atual ordem econômica global, não sabemos se os latino-americanos podem exercitar seus direitos democráticos livremente nem se os países da região podem exercer sua soberania. Isso em razão da intervenção dos chamados "mestres" dos mercados financeiros nos processos democráticos nacionais. Assim, a democracia interna latino-americana acaba sendo limitada pela falta de democracia existente no controle do mercado internacional. As escolhas dos povos latino-americanos são constantemente ameaçadas pelo setor bancário internacional. Este mina a capacidade de decisão dos latino-americanos, indicando que, se um candidato quiser aplicar dinheiro demais nas necessidades sociais do país, não dando a "atenção necessária" às regras das finanças internacionais -equilíbrio da balança comercial, pagamento de juros etc.-, a população sofrerá as conseqüências desses atos de seus dirigentes. Sem dúvida, trata-se de um tipo de interferência externa.

(Norman Birnbaum, expoente da esquerda americana, é professor emérito da Universidade de Georgetown (EUA)).

(*)Repórteres do jornal Folha de S. Paulo. Textos publicados na edição de 25/12/2005.