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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

domingo, janeiro 15, 2006

URBANISMO: Três estudos derrubam mitos sobre favelas

Publicações exibem perspectivas que escapam do estigma das comunidades como focos de violência, crime e miséria

Antônio Gois (*)

Espaço da total informalidade, lugar de pobreza absoluta ou de mão-de-obra para a criminalidade. Essas visões, comumente associadas às favelas cariocas, estão sendo contestadas em três livros recém-lançados sobre o tema. Eles ajudam a entender visões e preconceitos que a cidade foi construindo desde que a primeira favela passou a ser objeto de medo e preocupação no Rio. Os livros "A Invenção da Favela" (editora FGV), de Licia Valladares, "Favelas Cariocas" (editora Contraponto), de Maria Lais da Silva, e "Favela, Alegria e Dor na Cidade" (Senac Rio e X Brasil), de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa, mostram que a relação da classe média e da alta sociedade carioca com as favelas oscilou entre o medo, o desejo de remoção e o reconhecimento delas como parte da cidade.

No livro de Maria Lais da Silva ("Favelas Cariocas"), que analisou o período de 1930 a 1964, descobre-se que a mais emblemática favela da zona sul do Rio, a Rocinha, não surgiu de uma invasão, mas de um loteamento autorizado pela prefeitura que se expandiu fora da legalidade por causa da demora na regularização. "Boa parte das favelas eram ocupações autorizadas e não nasceram ilegais. O crescimento delas acompanhou os processos de expansão da cidade", diz ela.

Jorge Barbosa ("Favela, Alegria e Dor na Cidade") concorda e afirma que a característica da ilegalidade só é reforçada quando se trata de favela: "A informalidade é uma marca de toda a cidade. Hoje, 43% dos imóveis do Rio são de alguma forma ilegais. Há, por exemplo, condomínios de luxo com altura maior do que a originalmente permitida".

Dos três livros, o da socióloga Licia Valladares ("A Invenção da Favela") é o que mais ajuda a entender as origens de tantos conceitos e preconceitos. Muitos deles nasceram a partir do morro da Favella (hoje morro da Providência), que foi ocupado em 1897 por ex-combatentes da guerra de Canudos que pressionavam o Ministério da Guerra a cumprir promessas feitas aos soldados.

Valladares mostra que a partir da década de 20 o nome favela passa a rotular todo tipo de ocupação da população pobre em morros. Nesse período, o termo já estava repleto de preconceitos, como mostram trechos de jornais da época que se referiam às favelas como lepras a serem eliminadas e a seus moradores como criminosos à margem da lei. "Vários dogmas sobre favelas ainda persistem. Elas sempre foram vistas como locais de especificidade, diferentes dos demais por ser favela. Isso leva a uma visão homogênea sobre comunidades muito diferentes entre si. Também faz com que se analise a favela sem levar em conta os processos de ocupação fora dos morros", afirma Valladares.

Para ela, isso faz com que as favelas sejam vistas como únicos locais de pobreza, ilegalidade ou violência. "Falar de favela é exótico, chama atenção, mas pouco se fala de loteamentos na periferia onde há uma população muito pobre, onde há tráfico de drogas e onde há necessidade de regularização. É como se só na favela houvesse pobreza ou violência." Um estudo feito no ano passado pelo Instituto Pereira Passos confirma essa tese. Ele mostra, a partir do Censo 2000 do IBGE, que 64% da população que vivia na cidade do Rio com uma renda per capita inferior a um salário mínimo estava fora de favelas. Para a socióloga, esse discurso da favela como local único da pobreza foi alimentado tanto pela direita, ao defender sua remoção, quanto pelas organizações não-governamentais de esquerda, para justificar seu financiamento.

Crime
O geógrafo Jailson Silva ("Favela, Alegria e Dor na Cidade") lembra que a visão da favela como mão-de-obra barata para o crime é outro desses mitos usados pela esquerda e pela direita. "A gente ouve muito que é preciso ter programas sociais para que o jovem não se torne um criminoso, mas raramente se diz que ele tem direito a esses programas. É um juízo disseminado de que temos que oferecer oportunidades apenas para conter a violência."

Ele também não concorda com o discurso que justifica a ilegalidade a partir da pobreza: "O pobre não tem que deixar de pagar luz ou imposto por ser pobre, mas é preciso pensar em tarifas sociais e em investimentos públicos em favor dessas comunidades". Para Silva, muitos desses mitos foram construídos a partir do paradigma da ausência: "As favelas são sempre definidas a partir do que não têm. É o local da pobreza, da falta de perspectiva. É preciso construir um novo olhar a partir do paradigma da presença, ou seja, do que a favela tem". Um olhar a partir desse paradigma mostra, por exemplo, que Rocinha, Maré e Alemão têm indicadores de alfabetização, água, luz e esgoto melhores do que a média do Nordeste. Prova de que, como defendem os livros, as questões sobre as favelas são mais complexas do que supõe o senso comum.

(*) Repórter do jornal Folha de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 7/01/2006.