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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

sábado, janeiro 07, 2006

NEI LOPES: O pensador do Irajá

O sambista e intelectual ganha perfil de Cosme Elias em livro que investiga a identidade do negro e do carioca, a partir da análise de sua obra


Adriana Del Ré (*)

Cantor, compositor, pesquisador e pensador da identidade negra e carioca, Nei Lopes, de 63 anos, é um daqueles casos célebres do menino pobre que encontrou seu lugar no mundo. No caso dele, um garoto nascido e crescido no bairro do Irajá, subúrbio do Rio - difundido como espaço de concentração de negros e mulatos relegados à periferia -, que se tornou um dos intelectuais brasileiros mais atuantes no que se refere a assuntos ligados à cultura, tradição e história do negro. Nei se comporta como um denunciador do apartheid imposto à cultura e, sobretudo, à música produzida no Rio, descreve Marcus Vinícius de Andrade, presidente da Amar/Sombrás, entidade da qual Nei Lopes faz parte, em texto escrito para o livro O Samba do Irajá e de Outros Subúrbios - Um Estudo da Obra de Nei Lopes, de Cosme Elias (Pallas Editora, 284 págs., R$ 38). "Para embasar sua ação crítica, Nei Lopes tem sido um pensador radical, no conceito que a filosofia marxista empresta ao termo: aquele que busca a raiz das coisas", diz Andrade. "Nesse sentido, sua música se nutre, conscienciosamente, de seu labor como historiador e lexicógrafo. Tendo pesquisado a fundo a cultura e identidade negras, notadamente a história dos povos bantos desde a remota Mãe África, Nei Lopes enveredou também pelo estudo das matrizes lingüísticas que congos, quimbundos, umbundos, ovimbundos e outros grupos legaram à língua portuguesa."

Pois então: o sambista carioca, que nas últimas décadas, expressou seu papel de ativista compondo e escrevendo, de próprio punho (ele acaba de lançar dois livros, Partido Alto - Samba de Bamba e Kitábu - O Livro do Saber e do Espírito Negro-Africanos), vê agora mais do que sua história, mas sua obra sob foco de análise, dentro do contexto socioeconômico, histórico e cultural. A princípio, o autor Cosme Elias pensou no estudo como tema de sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais, no qual constrói o perfil múltiplo do afro-americano do Irajá, um misto de historiador, compositor, etnólogo, advogado e partideiro, cada qual alinhavado por uma coerência de vida e de produção intelectual. A análise extrapolou o reduto acadêmico e acaba de ganhar as prateleiras das livrarias.

O título que batiza a obra é inspirado em uma das canções mais representativas dentro da obra de Nei. O compositor a escreveu num momento de sufoco financeiro, no começo dos anos 70. Àquela época, ele se via obrigado a trabalhar como redator num ambiente que não lhe agradava. Durante a hora do almoço, começou a compor uma canção, inspirado no pai, que não costumava se abater diante das ameaças do chefe. Sua pai havia nascido meses antes da Abolição da Escravatura e morreu em 1960, na véspera de aniversário de 18 anos do compositor. Surgia ali a canção Samba do Irajá.

Ele nasceu Nei Braz Lopes, em 9 de maio de 1942. Sua mãe o teve em casa, ajudada por uma parteira portuguesa. Caçula de uma família de 13 irmãos, vinha ao mundo o mulatinho franzino e de saúde frágil que, mais tarde, com a tomada de consciência de sua negritude, se tornaria negro e um dos principais nomes da cultura popular brasileira. "Eu não nasci ‘negro’, me fiz negro. Na minha época, essa circunstância étnica era ainda mais adversa do que hoje", conta Nei. "A gente, quando tinha a pele um pouco mais clara, mesmo sendo beiçudo e de venta larga, saía pela tangente: ‘Sou mulatinho, sou moreno.’"

A convivência naquele ambiente, reforçado pela presença de certos parentes e amigos, acabou delineando seu caminho. O contato com a música, por exemplo, veio na infância, quando ouvia sua mãe cantar músicas de Sinhô enquanto passava roupa. Sua família era feita de músicos. Teve dois tios e dois irmãos reconhecidamente grandes músicos. Havia ainda o sobrinho Dairzinho, cavaquista. "A família era e ainda é extremamente musical. Só que o único que realmente se profissionalizou fui eu."

Essa profissionalização veio mais tarde. Antes disso, Nei se alfabetizou na casa da tia e, aos 11 anos, já no ginásio, publicou os primeiros versos no jornal dos estudantes. Mas o período de socialização ocorreu mesmo em 58, fase importante na vida do compositor, quando seu pai e vizinhos fundaram um clube, o Grêmio Pau-Ferro. Lá, Nei se desdobrava em diretor-secretário, ator de teatrinho, cantor, bailarino e escritor de peças de teatro, além de conquistar as primeiras namoradas.

A incursão pelo samba, que se configurou no universo ‘neidiano’ como uma de suas formas de expressão mais preeminentes, veio com o amigo Maurício Theodoro, que conheceu na escola técnica e cuja família tinha relação estreita com escolas de samba. Segundo Elias, esta ocasião foi importante, porque foi a iniciação de Nei no mundo do samba, o momento de uma nova tomada de consciência em relação à sua condição social e sua negritude. Por aquele tempo, o compositor se aproximou da religiosidade e da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. "O Salgueiro da época em que Nei começou a fazer parte, na década de 60, foi uma escola que começava a apresentar, em seus desfiles, temáticas raciais envolvendo a questão da negritude", observa Cosme Elias.

Formado em Direito, na década de 70 resolveu largar a profissão. A decisão abriu caminho para a carreira artística. "Advoguei, mas logo enjoei. A profissão não me permitia criar nada", diz o sambista. Passou então a criar textos para rádio e TV, jingles publicitários e a compor os primeiros sambas em parceria com Almir Santana, apesar de nenhum deles ter sido gravado. "Estava dentro do ambiente de música, dos estúdios. Então comecei tudo, compondo, gravando...", recorda ele.

Sua primeira canção gravada foi Figa de Guiné, feita com Reginaldo Bessa, que conheceu nos tempos que fazia jingles, e
registrada por Alcione, em 1972. É a partir desse ano que Nei Lopes contabiliza sua carreira profissional. Mas os sucessos só vieram depois, em fins dos anos 1970 - década em que o samba ganhou novo fôlego no cenário musical. Teve sua composição Coisa da Antiga gravada por Clara Nunes, em 77, e Senhora Liberdade e Gostoso Veneno, em 79, registradas por Zezé Mota e Alcione, respectivamente. As duas últimas foram assinadas com Wilson Moreira, seu parceiro mais célebre.

Foi em 72 também que o sambista estreou como intérprete num disco, Tem Gente Bamba na Roda de Samba, ao lado de outros artistas, em um tipo de gravação que na época era conhecido como trampolim para as carreiras artísticas dos envolvidos. Atualmente, sua discografia agrupa quase dez álbuns, entre LPs e CDs, mantendo-se fiel ao universo do samba. É nesse universo, aliás, que Elias encontra um viés para analisar a obra do artista em seu livro.

De acordo com o autor, é dentro da idéia de construção ‘identitária’ relacionada a um processo histórico nacional, em que o samba se apresenta como veículo de exteriorização das camadas subalternas, que ele deseja demonstrar como o samba se porta enquanto elemento de afirmação dessa identidade. "A construção da identidade, seja carioca ou negra, é um tema que não pretendo esgotar neste livro, apenas delinear, a partir da obra de Nei Lopes, os aspectos ‘identitários’ em sua produção musical e literária, observando como constrói o negro, o carioca e suas simbologias."

(*) Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada em 01/01/2006.