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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

domingo, novembro 27, 2005

O SISTEMA DE COTAS

LIÇÕES DE UM RACISMO NEM SEMPRE CORDIAL E HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO

Marcos Rolim (*)

Entre os estudos etnográficos do livro “Cabeça de Porco”, de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athaydes, há vários relatos de experiências pessoais que refletem a dimensão do racismo brasileiro no cotidiano dos negros. Tais relatos são impactantes pelo que revelam da insensibilidade moderna e pela dimensão de um sofrimento suportado, no mais, como uma “condição das coisas”. Mas eles produzem um efeito muito especial entre as pessoas brancas, porque nos colocam diante de circunstâncias que se tornaram invisíveis em nosso mundo.

Celso Athaydes, por exemplo, relata um episódio ocorrido em sua infância, no Rio de Janeiro. Ele e um amiguinho branco se deslocavam de ônibus pela cidade, sentados lado a lado. Dois moleques negros, então, entraram no coletivo. Passaram por baixo da roleta e, fazendo zoada, se aproximaram de uma senhora branca, que estava em pé, com uma bolsa à tiracolo. Os passageiros imaginaram que os rapazes iriam cometer um roubo e, por alguns segundos, o ônibus inteiro prendeu a respiração. A senhora, imaginem, ficou lívida. Mas eis que o ônibus parou e os moleques desceram normalmente. Foi nesse momento que a senhora branca virou-se para o garoto Celso e disse: “- Você viu o que os seus amigos quase fizeram? Eles iriam me assaltar! E você estava com eles!” O menino negro tentou falar algo, mas não conseguiu. Apenas o choro foi possível, um choro doído que brotava do fundo de uma história cruel iniciada na África há muito tempo. Seu amiguinho branco é que conseguiu balbuciar que eles estavam juntos e que nem conheciam os jovens que tanto assustaram a referida senhora. A dona, então, meio sem jeito, pediu desculpas e desceu do ônibus. Detalhe: pediu desculpas ao garoto branco!

Coisas do tipo acontecem todo o tempo com os negros em nosso País. Não as percebemos, via de regra, porque estamos cercados por imagens e notícias que foram, em larga medida, já filtradas etnicamente antes que chegassem até nós. A sociabilidade moderna experimentada notadamente pelas camadas médias e pelas elites econômicas e culturais é branca de fio a pavio. Olhamos para nossos jornais e vemos que não há negros na crônica social. A idéia que nossas elites fazem de “sociedade” é aquela que emergiu nos espaços que elas freqüentam, eles próprios o resultado de uma exclusão histórica sem paralelos no mundo ocidental. O seqüestro institucional da imagem negra, aliás, é cometido na TV, nos palcos, nas telas, nos livros de história e em tudo o mais. Espaços que expressam, também por isso, a relação denunciada por Walter Benjamim ao afirmar que todo o documento de cultura é, ao mesmo tempo, um documento de barbárie.

Hamilton Naki, o cirurgião clandestino da África do Sul, falecido no último dia 28 de maio, aos 78 anos de idade, simboliza como ninguém este fenômeno da invisibilidade. Quando no dia 3 de dezembro de 1967, o corpo de uma jovem branca, de nome Denise Darvall, deu entrada no Hospital com morte cerebral, o jovem médico branco Christiaan Barnard exigiu a presença de Naki no time de cirurgiões que haveria de realizar um dos maiores feitos da história da medicina. Havia um problema, entretanto: pelas leis do apartheid, um negro jamais poderia entrar em uma sala onde estavam cirurgiões brancos, nem cortar a carne de um branco ou tocar no sangue de um branco. Mas para o Dr. Naki, o Groote Schuur Hospital abriu uma secreta exceção. O mundo, entretanto, não soube que entre os pioneiros do transplante de coração havia um cirurgião negro de talento extraordinário que jamais havia tido a chance de freqüentar uma escola de medicina. Quando as fotos do primeiro transplante foram divulgadas pelo mundo, a presença de Naki, com um avental branco, foi oficialmente apresentada como a de um jardineiro.

Lembro estas histórias para que seja possível dimensionar melhor o significado da introdução de políticas de “ação afirmativa” no Brasil, que possam, por exemplo, nos moldes do que está sendo proposto pela Reforma Universitária, estimular a entrada de negros nas universidades. Não estamos na África do Sul, é verdade. Nossa estrutura jurídica consagrou, desde muito, a igualdade formal e a repulsa ao racismo. Essas diferenças tão importantes, entretanto, não são o mesmo que a igualdade real e estão longe de significar o fim do preconceito e do próprio racismo. Pelo contrário, é preciso reconhecer que o racismo está inteiro entre nós, que não há nada de “cordial” em suas manifestações; e que o fato dele se apresentar no Brasil sem verbo, só como gesto ou como pressuposto, sempre silencioso no que oferece de implacável, pode implicar em conseqüências ainda mais danosas para suas vítimas. Isso será mesmo evidente quando elas próprias forem capturadas pelo discurso neutralizador que, se não apregoa mais a existência mística de uma “democracia racial”, dissemina a idéia de que todo o ato de afirmação da identidade étnica é uma ameaça ou um “racismo às avessas”. Assim, então, o simples fato de se identificar para efeito de políticas públicas quem são os negros, os pardos, os indígenas ou os brancos já seria um problema. O que deve contar, afirmam, é a condição cidadã e os direitos que todos possuem. Se não for assim, asseguram, estaremos mergulhando o país nos riscos do tensionamento racial e da própria discriminação; dando um passo atrás, em síntese.

Mas o exame atento da realidade brasileira não ampara este tipo de preocupação. O registro étnico é muito importante em todas as áreas para que seja possível identificar, com precisão, o tamanho e a natureza do apartheid que sobrevive e se perpetua para além das garantias formais. De que adianta saber que nosso Código Penal vincula todas as pessoas se, por razões que operam para muito além do direito, as sanções e todo o aparato persecutório se movem mais amplamente sobre os negros que sobre os brancos? De que adianta saber que as leis de trânsito se referem aos motoristas sem qualquer distinção se, para além do que está positivado nela, os motoristas negros são sempre suspeitos? De que adiante saber que qualquer pessoa pode chegar à faculdade de medicina se nas fotos de formatura só há espaços para negros se convidarem o jardineiro?

Pois bem, mas aí os argumento passam a ser os seguintes: a) é muito difícil encontrar um parâmetro seguro para que os negros sejam identificados enquanto tal. Há uma extraordinária miscigenação no Brasil o que torna impossível a separação nítida das etnias com base na aparência e b) a introdução das cotas irá permitir que pessoas com menor qualificação cheguem à universidade, logo haverá uma tendência de perda de qualidade nos cursos. A auto-definição étnica é o caminho para enfrentar a primeira dificuldade. Casos especiais onde alguém coloque em dúvida a veracidade desta auto-definição podem ser examinados por um grupo especialmente designado, nos termos da experiência da UNB, por exemplo. Quanto à qualificação dos cursos, os critérios definidos para as ações afirmativas podem oferecer algum tipo de vantagem comparativa aos negros dentro de uma disputa de mérito. Algo como, por exemplo, uma vantagem na pontuação média. Assim, não se estará criando uma política que contrarie os critérios de seleção por mérito, mas bonificando aqueles que, por motivos históricos de discriminação, não tiveram a chance de partir do mesmo ponto para a disputa. Sendo este o caminho, estaremos falando de justiça, sobretudo. As diferenças de mérito entre os bonificados e os demais serão desprezíveis para efeitos de maior ou menor qualificação dos cursos, mas poderão ser muito significativas para estimular o ingresso de negros nas universidades.

Nada, de qualquer forma, que justifique o espanto. Nas nossas universidades já tivemos, no passado, outra “política de cotas”. Nos cursos das ciências rurais, houve, por muito tempo, a “lei do boi”, dispositivo pelo qual filhos de produtores rurais – em geral latifundiários – eram admitidos nos cursos sem os critérios de mérito exigidos dos demais. Não me recordo deste tipo de cota ter trazido algum protesto considerável, à época. Os mesmos que criticam as políticas afirmativas, em regra, também nunca acharam particularmente odiosa a previsão legal de prisão especial para titulares de diploma de curso superior.

Seja como for, penso que devemos saudar a disposição do governo brasileiro de ter sinalizado na proposta de Reforma Universitária uma política de ação afirmativa. Ruim mesmo seria não termos sequer a chance deste debate.

(*) Jornalista, Consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados

A inacreditável história de um médico sem diploma

The Economist(*)

Hamilton Naki, um sul-africano negro de 78 anos, morreu no final de maio. A notícia não rendeu manchetes, mas a história dele é uma das mais extraordinárias do século 20. "The Economist" contou-a em seu obituário desta semana. Naki era um grande cirurgião. Foi ele quem retirou do corpo da doadora o coração transplantado para o peito de Louis Washkanky em dezembro de 1967, na cidade do Cabo, na África do Sul, na primeira operação de transplante cardíaco humano bem-sucedida.
É um trabalho delicadíssimo. O coração doado tem de ser retirado e preservado com o máximo cuidado. Naki era talvez o segundo homem mais importante na equipe que fez o primeiro transplante cardíaco da história. Mas não podia aparecer porque era negro no país do apartheid.

O cirurgião-chefe do grupo, o branco Christiaan Barnard, tornou-se uma celebridade instantânea. Mas Hamilton Naki não podia nem sair nas fotografias da equipe.
Quando apareceu numa, por descuido, o hospital informou que era um faxineiro. Naki usava jaleco e máscara, mas jamais estudara medicina ou cirurgia.
Tinha largado a escola aos 14 anos. Era jardineiro na Escola de Medicina da Cidade do Cabo. Mas aprendia depressa e era curioso. Tornou-se o faz-tudo na clínica cirúrgica da escola, onde os médicos brancos treinavam as técnicas de transplante em cães e porcos. Começou limpando os chiqueiros. Aprendeu cirurgia assistindo experiências com animais. Tornou-se um cirurgião excepcional, a tal ponto que Barnard requisitou-o para sua equipe.
Era uma quebra das leis sul-africanas. Naki, negro, não podia operar pacientes nem tocar no sangue de brancos. Mas o hospital abriu uma exceção para ele.
Virou um cirurgião, mas clandestino. Era o melhor, dava aulas aos estudantes brancos, mas ganhava salário de técnico de laboratório, o máximo que o hospital podia pagar a um negro. Vivia num barraco sem luz elétrica nem água corrente, num gueto da periferia.
Hamilton Naki, um sul-africano negro de 78 anos, morreu no final de maio. A notícia não rendeu manchetes, mas a história dele é uma das mais extraordinárias do século XX. Depois que o apartheid acabou, ganhou uma condecoração e um diploma de médico honoris causa. Nunca reclamou das injustiças que sofreu a vida toda.

(*) Revista britânica especializada em economia e política.