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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

domingo, outubro 30, 2005

AS DIFERENÇAS QUE NOS TORNAM IGUAIS



Aprovada por 148 países, combatida pelos Estados Unidos, Convenção da Diversidade Cultural tem longo trajeto até vingar

Jotabê Medeiros (*)

Em menos de 20 anos, o comércio mundial de bens culturais – cinema, vídeo, DVD, música, fotografia, livros, artes visuais – quadruplicou, passando de US$ 95 bilhões em 1980 para mais de US$ 380 bilhões em 1998 (estima-se que este ano atinja cerca de US$ 1,3 trilhão). Mas cerca de quatro quintos desse montante tem origem em apenas 13 países e um deles, os Estados Unidos, por exemplo, detém 85% das bilheterias de cinema do mundo todo com filmes de Hollywood (88 entre os 185 países no mundo não têm produção cinematográfica alguma). Os dados são das Nações Unidas, do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 2004.

O tremendo potencial econômico das chamadas indústrias criativas e os efeitos perversos da globalização – a padronização cultural como o maior deles – foram as forças propulsoras de um grande movimento de reação no mundo todo, que culminou, na quinta-feira, 20 de outubro, com a aprovação da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade e das Expressões Culturais.
Foi aprovada em Paris, na sessão plenária da 33ª Conferência Geral, e já é considerada por muitos como o Protocolo de Kyoto da Cultura. O documento foi aprovado por 148 dos 154 países que votaram, com oposição dos Estados Unidos e Israel e quatro abstenções (Austrália, Nicarágua, Honduras e Libéria). O Brasil foi um dos grandes articuladores do texto, cujo embrião foi forjado em São Paulo, no ano passado, no Fórum das Culturas do Anhembi. A convenção entrará em vigor depois da ratificação de pelo menos 30 países. Seu artigo 20 (são 35) dá a ela o mesmo nível jurídico que o dos tratados bilaterais e as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

É um documento extremamente abrangente. Inclui, por exemplo, conhecimentos tradicionais,como as velhas práticas de cura pelas plantas. As patentes de natureza biológica, por exemplo – no Brasil, segundo dados do governo, apenas apenas 0,48% das patentes relacionadas a 1.119 plantas do país foram registradas por brasileiros. Todo o resto foi apropriado por cientistas e pesquisadores estrangeiros.

O ministro Gilberto Gil, falando ao Estado no dia da votação do documento, disse que o texto aprovado garante a promoção e proteção às atividades e bens de serviço culturais. Mas a sua efetiva implementação depende de força de vontade. “Tudo depende de como os países vão querer se colocar em relação à essa cultura de grandes padrões internacionais, como é a questão do audiovisual.”

Muitos países que votaram a favor, como a França e o Canadá, já possuem políticas de proteção de sua produção cultural, em áreas como audiovisual e outras. Sua adesão, entretanto, pode ajudar outros países a criarem suas defesas. Alguns Estados acreditam que a convenção poderá ser uma proteção contra aquilo que chamam de hegemonia cultural. Hoje, há aproximadamente 6 mil línguas faladas no mundo, mas somente 4% das línguas são usadas por 96% da população mundial (50% das línguas do mundo estão em perigo de extinção e 90% dessas linguagens não estão representadas na internet).

Avessos à movimentação, os Estados Unidos pensam que, ao contrário, a nova convenção atenta contra o “direito do homem” e “esmaga as minorias”, sob o pretexto da política cultural e lingüística, no dizer da secretária de Estado americana, Condoleezza Rice. Para a secretária, trata-se de uma política “protecionista” e que é contra uma “liberalização mundial do comércio sob a égide da Organização Mundial do Comércio”.

Outra avaliação americana: a convenção “pode prejudicar, mais do que promover, a diversidade cultural”,: segundo disse na semana passada a representante americana na Unesco, Louise Oliver. Para Louise, “o instrumento permanece muito falho, aberto a interpretações equivocadas e propenso a abusos”. Ela crê que muitos países a utilizarão “para controlar, e não para facilitar, a circulação dos bens culturais”.
O principal aliado americano, no entanto, discorda. O embaixador britânico na Unesco, Timothy Craddock, falando na União Européia, declarou. “É um grande dia para a Unesco.” O ministro francês da Cultura, Renaud Donnedieu de Vabres, disse a jornalistas que, numa época de crescente fundamentalismo religioso, a convenção sublinha a importância da diversidade cultural, o orgulho nacional e também a paz. “É uma vitória da consciência nascente.”

Para o diário The Wall Street Journal, a convenção não pode ser boa coisa, já que está sendo referendada pela “China e outros países repressores”. Para o jornal, o acordo serve para justificar “facilmente o fechamento de redes por satélite ou de periódicos em nome da segurança cultural”. O ministro Gilberto Gil acredita que o boicote americano à convenção tende a arrefecer. “Esse isolamento dos Estados Unidos e essa tentativa de negar a palavra, o impulso e, digamos, a ação dos outros países com relação ao meio ambiente, aos diretos internacionais, a esta Convenção e às várias outras – como Protocolo de Kyoto e o Protocolo para o Fundo dos Mares – vai gradualmente se dissipar. Tenho a impressão que a realidade vai obrigá-los a vir pouco a pouco. Por exemplo, no caso do Protocolo de Kyoto, hoje, já há vários Estados americanos que querem aderir, de forma autônoma, ao documento”, analisou Gil.

Nos Estados Unidos, a reação à convenção até agora tem sido ou virulenta ou irônica. Na quinta-feira, o jornal The New York Times definiu o embate como “guerra fria da diplomacia cultural”, um lance do antiamericanismo reinante. “A convenção, é claro, foi adotada de qualquer maneira, mas não mostra real ameaça a Hollywood. Para quase todo mundo lá fora, das vilas do Himalaia aos assentamentos na Amazônia, é a cultura popular que vai continuar a definir o que há de certo e o que de errado na sociedade americana.”

Entretanto, o jornal indaga se não é o caso de os americanos retomarem sua diplomacia cultural – marca dos tempos da guerra fria – como uma forma de combater um sentimento de opressão mundial, adotando uma atitude menos invasiva. “A nova situação é mais multipolar”, disse ao jornal Frank Hodsoll, que coordenou o National Endowment for the Arts (órgão responsável pelo incentivo à cultura nos Estados Unidos) durante a administração Reagan e dirige o Center for Arts and Culture em Washington. “Há uma necessidade de mais esforços em muitos outros lugares onde as culturas são muito diferentes.”

Leonardo Brant, vice-presidente da International Network for Cultural Diversity, em texto para o livro Diversidade Cultural, alerta para o maniqueísmo, a xenofobia e o extremismo do discurso que põe os americanos como algozes da diversidade cultural. “A definição de um posicionamento ou uma política de proteção da
diversidade é algo muito complexo e depende de diálogo e de convicção de qual política adotar”, escreveu, atentando para a importância da convenção como fator de garantia de pluralismo. Segundo Brant, a discussão desses temas, no Brasil, é premente e seu avanço tende a colocar a cultura no eixo do projeto de desenvolvimento. Há um desequilíbrio, mas ele dificilmente pode ser enfrentado por meio de protecionismo, barreiras comerciais e cotas.

PONTO DE VISTA

Lévi-Strauss, em seu clássico Raça e História, já dizia que “de nada adiantaria defender a originalidade das culturas humanas contra elas mesmas”. O que teria de ser preservado não seriam as diferenças peculiares de cada cultura, mas sim o “afastamento diferencial” entre elas. O que deveria ser combatido é a ameaça de entropia contida na profecia de homogeneização cultural planetária. O homogêneo seria sinônimo de petrificado ou morto. O equilíbrio seria a impossibilidade de saltos evolutivos da humanidade. Estaríamos condenados, se quiséssemos nos manter vivos, a ser diferentes e conviver com a diferença. Mas é claro, também para Lévi-Strauss, que o salto evolutivo seria produto do encontro entre vários sistemas culturais diferentes – só a diferença não basta, é preciso haver troca entre elas. Hermano Vianna, antropólogo, em texto para o livro Diversidade Cultural (Ed. Escrituras, 2005)

(*) Repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 30/10/2005.