REITOR DA “ZUMBI” CRITICA UNIVERSIDADES
Dirigente de faculdade voltada a afrodescendentes cobra mais políticas para reduzir desigualdades no país
Fábio Takahashi (*)
As universidades não estão interessadas em ajudar a diminuir as desigualdades sociais. A opinião é de José Vicente, presidente da ONG Afrobras, que busca o desenvolvimento social dos negros.
Esse pensamento levou Vicente, 45, a criar há cerca de três anos a faculdade Zumbi dos Palmares, instalada no centro de São Paulo. A intenção é oferecer ensino superior a afrodescendentes, para que eles próprios busquem mecanismos que permitam uma ascensão social de negros e de pobres.
Vicente, que tem formação superior em direito e em sociologia, é o reitor da faculdade.
Para ele, há descaso de universidades tradicionais com os negros e pobres. Ele cita, nominalmente, a USP. ""A Universidade de São Paulo deveria ter um grupo de trabalho há mais de 50 anos para trazer respostas para o problema das desigualdades sociais", afirma Vicente.
A pró-reitoria de graduação da USP se defende da acusação (leia texto nesta página).
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Vicente à Folha.
Folha - Por que a faculdade Zumbi dos Palmares foi criada? As universidades não têm, atualmente, condições de atender às exigências dos estudantes negros?
José Vicente - Não têm condições nem interesse de melhorar a vida dos negros e afrodescendentes.
Folha - Mas seria papel das universidades tratar de apenas uma fatia da população?
Vicente - Sim. A classe intelectual, que está dentro da universidade, deveria ter uma resposta para as desigualdades sociais. Pagamos caríssimo para deixar grandes pensadores se qualificando no exterior, fazendo cursos de toda a natureza.
Pela lógica, quem deveria trazer respostas para solucionar um problema estrutural do nosso país, que é a cisão entre os negros e os não-negros? Seriam os intelectuais. Mas, por motivos muitas vezes ""inconfessais", eles não têm mostrado interesse em se debruçar nesse tema. Se eles não o fazem, cabe aos movimentos dos mais variados tentarem caminhos alternativos.
A Universidade de São Paulo deveria ter um grupo de trabalho há mais de 50 anos para trazer respostas para o problema das desigualdades sociais. Mas tudo o que se conseguiu discutir até agora, que é a política de cotas [no ensino superior], não saiu de dentro da universidade, mas sim dos movimentos sociais. Daí esses intelectuais saem da universidade e afirmam que a cota é imoral, ilegítima, racismo às avessas. Então você diz: ""Tudo bem. Mas então qual a solução que vocês trazem, já que vocês ganham para dar respostas como essa?" A resposta é: ""Não tenho". Uma universidade que consegue trabalhar com o seqüenciamento genético não tem capacidade de pensar em alguma solução para essa questão social? Isso gera uma tensão muito grande. Por enquanto, dá para segurar a ""negrada" na Cidade Tiradentes [região pobre da periferia de São Paulo], mas eles não vão ficar lá para sempre.
Folha - Um dos argumentos das universidades que não querem cotas raciais é que essa política poderia aumentar o racismo, porque todos os negros que estivessem na universidade seriam encarados como cotistas, que tiraram vagas dos outros estudantes. O que senhor pensa sobre isso?
Vicente - Essa é uma justificativa de quem está com um privilégio há mais de 500 anos e que não quer saber o que está ocorrendo lá fora [da universidade]. O cotista vai ser estigmatizado? O negro não quer nem saber, ele quer mais é entrar na USP. Seja por cotas, pelo telhado, pelo banheiro.
Folha - Quais serão os próximos passos da Zumbi dos Palmares?
Vicente - Estamos nos preparando para oferecer outros cursos [atualmente, a faculdade mantém somente o de administração].
Antes de abri-los, o que deverá ocorrer em dois anos, temos de cumprir algumas exigências da legislação.
Folha - Quais serão os cursos?
Vicente - Direito e um de comunicação, provavelmente rádio e TV. Precisamos de profissionais da área de comunicação que tenham a consciência do que queremos implantar com o nosso trabalho e divulgar isso. E também precisamos de juristas que compreendam o tema dos direitos humanos e da cidadania, mais especificamente a dos negros. O de administração foi escolhido porque precisamos despertar esse negro para o empreendedorismo. Queremos despertar no jovem negro o valor de gestão de negócio, a do seu negócio, não o do outro.
Folha - O Brasil é um país racista?
Vicente - Não há dúvidas. Dias atrás, houve comemoração porque a diferença entre salários de brancos e de negros diminuiu de 130% para 90% [ele cita um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, divulgado no final do mês passado]. Olha o percentual em que isso ainda está. Não preciso dizer mais nada.
SAIBA MAIS SOBRE A FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES
87% dos alunos declararam ser afrodescendentes
A faculdade Zumbi dos Palmares possui 650 alunos, sendo 87% afrodescendentes. O reitor da instituição, José Vicente, afirma que a mistura é o ponto forte da instituição, que busca capacitar profissionais que busquem diminuir as desigualdades sociais.
"Não pode ter só negro, porque ele já sabe de cor e salteado [as desigualdades]. E não pode ser só de não-negros, porque seria apenas uma exposição teórica", afirma Vicente. "Boa parte do racismo no nosso país acontece porque não há esse contato", complementa.
Segundo o reitor, a faculdade é a primeira da América Latina a ter mais de 80% de alunos negros.
A faculdade reserva 50% das vagas a candidatos que se autodeclararem afrodescendentes. Caso não haja um número suficiente de inscritos para preencher essa cota, os lugares passam para o "sistema universal" -o movimento inverso também pode ocorrer.
A mensalidade é de R$ 260. Para manter o valor menor do que o de mercado, a faculdade conta com doação de empresas e com a ajuda dos professores, que recebem menos do que ganhariam em outras instituições de ensino superior.
A Zumbi dos Palmares tem autorização do Ministério da Educação para oferecer 400 vagas. Excepcionalmente, no próximo processo seletivo serão 600, porque a instituição abriu apenas 200 no primeiro ano. As inscrições para o exame estão abertas e vão até 22 de novembro. Mais informações sobre a instituição no site www.unipalmares.org.br ou pelo telefone 0/xx/11/3313-8701.
A PALAVRA DA USP
A pró-reitora de graduação da USP, Sonia Penin, nega que a universidade não tenha preocupação com a inclusão social. Para sustentar essa posição, Penin cita o grupo de trabalho formado na pró-reitoria de graduação para estudar o tema.
Uma das conclusões do grupo foi a necessidade de aumentar a quantidade de isenções da taxa de inscrição do vestibular. O número subiu de 15 mil para 65 mil de 2002 até este ano, quando a inscrição custou R$ 105, já com o manual do candidato.
Outra medida é o programa de capacitação de professores do ensino médio público. Com relação às cotas, a USP ainda debate a medida.
(*) Repórter da Folha de S. Paulo. Matéria publicada na edição de 23/10/2005.
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