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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

sexta-feira, setembro 23, 2005

O CASO DAS COTAS
A idéia de inclusão deveria prosperar pela lógica econômica: os contribuintes, em sua maioria pobres, negros ou mestiços, têm direito a ver seus filhos nas escolas e empregos mantidos por seus impostos

Por Ivan Martins (*)

A professora Raquel Vaillardi, sub-reitora de graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, está vivendo um desafio de primeira grandeza. Cabe a ela integrar, formar e diplomar os 7 mil estudantes cotistas da Uerj, que ganharam vaga através de um programa de ação afirmativa em favor dos pobres e das minorias. Os cotistas já são pouco menos de um terço dos 25 mil alunos totais da universidade. Desde 2003 eles correspondem a 45% dos calouros da instituição: 20% negros, 20% de escolas públicas e 5% deficientes físicos, todos comprovadamente carentes. É um público novo, sobretudo em cursos de elite como medicina e direito, que apresenta motivações e problemas inéditos no ensino superior brasileiro. Os cotistas são mais assíduos, são mais interessados, trabalham mais que os outros. Por outro lado, têm sido reprovados em maior número nas disciplinas de exatas - sobretudo cálculo - e enfrentam problemas econômicos que a maior parte de seus colegas de classe média nem imagina. Falta dinheiro para condução, falta dinheiro para os livros, falta dinheiro para o computador e para o almoço. O problema acadêmico a professora Raquel já conseguiu contornar: com aulas de reforço, chamadas de iniciação acadêmica, os cotistas conseguem superar as deficiências de formação trazidas da escola pública. Passam a operar com a eficiência dos colegas oriundos da escola privada. O problema econômico é menos tratável. De onde a universidade vai tirar dinheiro bolsas e programas de apoio necessários aos seus estudantes pobres? Para isso a lei estadual que criou as cotas da Uerj havia previsto uma verba, mas ela não se materializa. No ano passado a universidade deveria ter recebido R$ 8,5 milhões, mas recebeu menos de R$ 1,0 milhão. O Estado que abre a porta a inclusão social pode fechá-la por falta de comprometimento econômico.

Um leitor desinteressado da universidade pública poderia perguntar por que, afinal, esse tema lhe diz respeito. Resposta: porque o ensino superior é o campo de teste para uma idéia potencialmente revolucionária na vida econômica brasileira. Se as cotas mostrarem-se viáveis na universidade, tendem a se expandir para outros setores da economia, como ocorreu nos EUA. O Brasil é uma sociedade multiracial com uma elite quase totalmente branca. Logo, há vasto espaço para ações que criem um pouco mais de simetria. Se não fosse por imperativos morais, a idéia da inclusão deveria prosperar pela lógica econômica: os contribuintes, em sua maioria pobres, negros ou mestiços, têm direito a ver seus filhos nas escolas e empregos mantidos por seus impostos. Mas nem por isso a idéia deixa de ser polêmica. O governo acaba de encaminhar ao Congresso um anteprojeto de reforma universitária no qual se prevê que metade das vagas das universidades federais deve ficar com estudantes da escola pública – e que deve ser mantida, na lista de admissão, a mesma proporção étnica da população ao redor. Se for em Salvador, maioria de negros. Se for em Manaus, predomínio de índios. A reação foi tamanha que o Ministério da Educação jogou a entrada em vigor das cotas para 2015, numa tentativa de obter aprovação do Congresso.

Existe no meio acadêmico resistência à idéia das cotas. Reitores de escolas tradicionais temem que ela possa baixar o nível de ensino, colocando nas salas de aulas gente despreparada para aprender – e lançando nas ruas, anos depois, profissionais incapacitados para medicar, projetar ou redigir. Desse ponto de vista a experiência da Uerj é importante: ela sugere que os problemas de assimilação podem ser superados. Mesmo assim, outras instituições estão testando formas alternativas de ação afirmativa. Na Universidade Estadual de Campinas implantou-se no vestibular deste ano um sistema de pontuação: alunos de escolas públicas ganham 30 pontos a mais na segunda fase do vestibular. Se forem negros, mais 10 pontos adicionais. Com essa fórmula, a Unicamp conseguiu aumentar de 28% para 34,1% o percentual de estudantes oriundos de escolas públicas entre os seus calouros de 2005. Na Medicina conseguiu-se o ingresso de 34 alunos da escola pública em uma turma de 110, com 16 negros entre os calouros. A reitoria da Unicamp acredita que esse sistema contempla a inclusão sem colocar em risco a qualidade do ensino. Nos Estados Unidos, onde essa discussão começou em 1972, o assunto segue polêmico, sujeito a idas e vindas dos tribunais. O que não muda por lá é a disposição de integrar no topo do sistema econômico uma parcela da população que não tem oportunidade de ascensão social. Nos EUA, os excluídos econômicos são minoria. Aqui, formam a maior parte da população.

(*) O autor é jornalista e ocupa o cargo de editor-executivo na revista IstoÉ DINHEIRO. Esse artigo foi publicado originalmente na edição 420 da revista, em 24/09/2005.