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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

terça-feira, setembro 20, 2005


AS AMEAÇADORAS BANDEIRAS DA NEGRITUDE

JOEL ZITO ARAÚJO (*)

Toda unanimidade cai no jargão do Nelson Rodrigues, mesmo aquela que nasce na intelectualidade zona sul, especialmente a que adora ridicularizar toda e qualquer novidade que sacuda o imaginário racista brasileiro. Neste meio é chique e inteligente se posicionar contra cotas, contra políticas afirmativas, contra o pedido de perdão de Lula na Ilha de Gorée e contra a condenação de expressões e piadas racistas.
Nem mesmo o surpreendente número de brancos aprovados pela Universidade de São Paulo no vestibular de 2005 (77% brancos e 2% de negros) parece mexer em um pensamento cristalizado de uma parte significativa da geração de artistas e intelectuais que teve a sua criatividade alimentada pelas idéias de Gilberto Freire. Como que em defesa da persistência do mito da democracia racial, recusam-se a pensar nossa sociedade na forma que ela de fato é, um mosaico da diversidade, que apesar da mistura mantém e manterá muitos dos seus traços raciais originais. A lembrança de nossa miscigenação aparece somente como um instrumento reacionário (de reação ao novo), alimentando o secular atavismo das elites brasileiras.
Surpreso, comecei a compreender que meus heróis do passado hoje fazem parte da elite brasileira. Celebridades intelectuais, que gostam de posicionar-se como visões autônomas, chegaram ao topo e hoje adoram menosprezar o “crioléu”, que parece não saber mais o seu lugar.
A idéia de uma identidade negra é vista como macaqueação fora de moda do paradigma americano, ignorando-se assim que a negritude no Brasil é um pensamento secular. O que alimentou centenas de jornais negros desde o inicio do século passado? A criação do Partido da Frente Negra Brasileira em 1936, com milhares de adesões nas maiores cidades do país (colocado na ilegalidade por Getúlio Vargas)? E a formação de intelectuais como Abdias Nascimento e Milton Santos?
A constatação de que havia africanos que capturavam africanos para vender como escravos converteu-se em instrumento para apagar qualquer responsabilidade de uma elite surgida exatamente de um modelo que teve em suas bases a exploração, a humilhação e o massacre de cerca de cinco milhões de africanos que aqui chegaram seqüestrados e escravizados.
É como apagar da História o Holocausto nazista citando o comportamento da direita israelense atual. Ou esquecer que a Segunda Guerra Mundial foi mais um ato de auto-exterminação iniciada entre os homens brancos europeus. Constatar que o homem é o lobo do homem não apaga responsabilidades históricas.
E, nas linhas desta intelectualidade acomodada em seu patamar de celebridade esclarecida, a idéia de miscigenação é a faca mais afiada contra qualquer ação política de reparação.
Ao ler seus artigos, temosa impressão de que a miscigenação é uma magnífica criação deste país, tão original quanto a constatação de que Deus é brasileiro. Silenciando ou ignorando assim que a ideologia da mestiçagem está profundamente ligada ao processo de formação das nações latino-americanas, como uma tentativa de imaginar uma identidade nacional híbrida e de esconder e desvalorizar a heterogeneidade cultural, étnica, lingüística e racial comum a todos nós. A rejeição da noção européia de pureza de sangue, dos nossos intelectuais do passado, não trouxe consigo nenhuma preocupação em tirar o sentimento de inferioridade racial dos mestiços. Ao contrário, intensificou a atitude de submissão e o desejo de branqueamento.
As telenovelas produzidas na América Latina são os maiores certificados do quanto é comum e natural a suprema valorização dos brancos e o lugar subalterno dos negros, índios e mestiços. Em nenhuma delas é possível encontrar como padrão ideal e genuinamente “nacional” de beleza os filhos da raça cósmica, ou o mulato inzoneiro.
E quais são as ameaçadoras bandeiras da negritude? Cotas para jovens negros nas universidades, campanha pelo fim da intolerância contra religiões de matriz africana, regularização das terras dos quilombos nas regiões mais pobres do Brasil. Onde está o ódio racial e o separatismo destas reivindicações?
A ridicularização de qualquer ação de governo que cede aos apelos do “crioléu” atesta uma profunda inconsciência ou aversão à emergência dos fenômenos de etnicidade na América Latina que tem, principalmente nos movimentos indigenistas do Equador, da Bolívia, da Guatemala e do México, sua face mais avançada e saudável. E tem na manipulação dos símbolos étnicos incas pelo Sendero Luminoso o mais cruel exemplo de onde esta tensão pode chegar, se continuar sendo ignorada, “denegrida” ou tratada como “coisa de índio” por aqueles que já chegaram ao olimpo. Pegando emprestada a bela frase do nosso Lenine, nenhum deles parece fazer a mínima idéia de quem vem lá.

(*)JOEL ZITO ARAÚJO é cineasta, autor do premiadíssimo “Filhas do Vento” e do vídeo institucional “Vista minha pele”, feito para o Ceert. Também discorre sobre a presença do negro na teledramaturgia brasileira em "A Negação do Brasil, O negro na telenovela brasileira”, em livro editado pelo Senac.

Publicado originalmente na página de opinião de O GLOBO,em 29/05/2005