
A IMPLOSÃO DA REPÚBLICA
O governo Lula atualiza a forma de poder tradicional do Brasil, própria do capitalismo no país, em que o dinheiro e as relações pessoais se entrelaçam para saquear a nação, "empobrecer e despolitizar o povo"
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO (*)
Powerful" Brasil: epíteto de nosso país, entre outras nações submetidas às estratégias mundiais de hegemonia político-econômica, expostas em recente livro sobre a "corporatocracia" norte-americana (John Perkins, "Confessions of an Economic Hit Man", Barrett-Koehler, 2004).A novidade, nesse relato, é que seu autor descreve, no sistema de mando que liga sigilosamente centros internacionais de decisão e quadros domésticos coadjuvantes, a destreza em desferir golpes -projetos técnicos superdimensionados, provisão de recursos excessivos, corrupção, lavagem de dinheiro, suborno, proxenetismo, colapso de governos, repressão organizada, assassinato- em benefício de mandatários privados conexos a poderes públicos.
Favores e dinheiros entretecem essa rede.
As técnicas de controle político-econômico reeditam, com empréstimos insaldáveis, a astúcia de prover fiado para escravizar a passos perdidos. "Desenvolvendo" iniciativas custosas -parques industriais, usinas de energia, sistemas viários, redes de telecomunicações, portos e aeroportos, complexos mercantis, agronegócios, empreiteiras, empresas petrolíferas, complexos exportadores, bancos-, os Golias transnacionais e seus acólitos nativos maximizam os ganhos e reduzem à indigência o povo restante.
A preeminência do sistema financeiro, nessa linha, propeliu ao infinito a concentração de riqueza. O dinheiro aplicado nunca sai, de vez, do país de origem, voltando acrescido. Este conto, "se non è vero, è ben trovato": oferece uma visão conjunta dos fenômenos e dá sentido a evidências aqui reiteradas.
A cultura da fraude, mundo afora, confirma essa crônica de misérias. Na Alemanha, vista pela Transparência Internacional como uma das nações menos corruptas, escândalos financeiros abalam negócios estatais e privados. Proxenetismo, propinas e subornos mesclam-se a delitos como a lavagem de dinheiro por bancos de comércio e empresas de telecomunicações ou, na indústria, como o suborno de líderes sindicais, obsequiados com férias e prostitutas em troca de apoio trabalhista para corte de custos.
Neste caso, a investigação atingiu alto executivo da indústria e assessor do governo em um plano de reforma econômica que afrontou a classe operária alemã. Esse funcionário demitiu-se, negando seus malefícios (Jeffrey Fleishman, "Corporate Corruption Rattles Germany", "Los Angeles Times", 24/8/ 2005).
Ciranda infernal
O termo "Poderoso Brasil", acima, aparece na estratégia para manter a supremacia americana no continente, sem referência aos programas porventura a nós destinados. Uma só alusão é feita ao Rio de Janeiro e aos contatos com os "agitadores" locais. Embora dissimuladas, essas práticas deixaram indícios de nossa participação em sua infernal ciranda. Seus marcos aqui subsistem.
Desde o governo Dutra, passando por JK e pelo "milagre econômico", crescentes dificuldades e continuadas situações recessivas levaram ao labirinto de créditos, dívidas, usura, derrama, confisco, retumbando a exigência de forte ajuste fiscal e aperto monetário visando "estabilizar" a economia, com o Fundo Monetário Internacional no horizonte.
Com Fernando Henrique Cardoso, as privatizações legitimaram o pleno direito de passagem pelos encraves de bens públicos, notadamente com a cessão de negócios estatais lucrativos e com o socorro a bancos, eximindo-se das atribuições básicas do governo. Este guardou os seus segredos e manteve as aparências de fé pública. Dólares e euros, desde então, acotovelam-se nessa cornucópia.
O confisco do patrimônio público cresceu, férreo, com Lula. O clichê justificativo das decisões financeiras repete o gárrulo refrão: "Estabilidade da economia". Equilíbrio "em favor de quem e para fazer o quê" é a pergunta que se opõe às certezas abstratas, cuja resposta, nesse caso, aponta para o saque da riqueza produzida no país. Os juros excessivos e tributações exorbitantes infletem para o inexorável "superávit primário" destinado a "honrar" as dívidas que, pagas às expensas do cidadão e à custa de suas carências, foram contraídas sem controle civil de sua gênese ou fins.
Palocci
Esse teor abstrato sela a entrevista coletiva de Antonio Palocci, alardeando os "fundamentos sólidos da economia".
Sua autojustificativa consagra o "mercado tranqüilo", as grandes exportações, os agronegócios prósperos, as estatísticas oficiais dóceis e escamoteia a indústria lesada, o comércio parado, o desemprego renitente, a pobreza contumaz, as lacunas em educação e saúde, e por aí afora. O elogio da "economia", abstraída de outros campos, funda o discurso que "blinda" Palocci e Lula, sem que se aponte as forças que a mantém e o limite de seus resultados ou se atente para as decorrentes exclusões e queda nos níveis vitais. Reside exatamente aí, na apropriação lesiva de recursos alheios confiados a eles em virtude do cargo, no monopólio do poder para a pilhagem do povo, a mais formidável corrupção, aberta e legalizada, que implode a soberania da República. As demais violações, superlativas ou mesquinhas, são resultados.O circo de improbidades que assistimos é, pois, historicamente definido nas condições presentes, as quais encontraram, porém, solo fértil em nossa ética política, afeita à mistura entre público e privado e pródiga nas correlatas vantagens. O amálgama entre dinheiro e favor, forma de dominação peculiar à gênese do capitalismo no Brasil, vigora sempre.
O atual governo e seu partido reeditaram as formas de poder que entrelaçam moeda e relações pessoais. No PT, a cobiça de recursos partidários e a modéstia dos bens particulares, face aos custos eleitorais e às promessas do poder, abriram as portas ao subterfúgio: cavar negócios, dar e receber, pedir e tomar. A cupidez subjetiva completa o quadro. Condutas desse jaez promovem explorações nas franjas da ilegalidade (lixo ou bingo), com sua dupla face, voltada para o partido e para seus dirigentes.
Mas Janus complicou-se: em algum ponto, projetos políticos e ambições individuais pactuaram com estratégias econômico-financeiras de porte mundial. As dívidas contraídas nesses acordos são remuneradas à custa do "poderoso Brasil": riquezas imensas e trabalho colossal nutrem o fantástico "superávit primário" que seduz os patrocinadores do poder, vicariamente exercido por seus empregados, nossos governantes. A "economia" não é absoluta, jamais pode ser ou não ser "contaminada" pela política: ela "é" uma política, cujos benefícios não abarcam o indefinido Brasil da oratória oficial, mas limitam-se a grupos precisos.
Sem razão
A burocracia petista, nas atribuições oficiais, esvaziou-se até mesmo da racionalidade constitutiva desse aparato: inexiste hierarquia eficaz, especialização de funções e cargos, competência profissional, eficiência, fins institucionalizados. Os quadros do governo, com poucas exceções, são impermeáveis ao objeto que administram. A burocracia assim vivida é inapta para o Estado, indiferente ao saber, estéril.
Lula, ícone desse contra-senso, louva a ignorância e encarece o analfabetismo num universo dominado pelo conhecimento. Palocci compõe um exemplo mais circunspecto. Ao rebater a denúncia de propina, declarou jamais ter contemplado outro "negócio" que o serviço público.
De fato, seu período médico é parco (5 anos) face à carreira de político profissional: vereador (aos 21 anos), deputado estadual e federal, presidente do PT paulista, coordenador de campanha, ministro. Sua formação técnica escapa ao cargo que hoje ocupa.
Daí o infortúnio desse grupo: os Delúbio, Berzoini, Gushiken, Dirceu, Genoino, Lula, pouco ou nunca se empenharam em criações materiais ou do espírito, presos à máquina do partido ou sindicato e a um poder inane, atento em seduzir a todos, dos miseráveis aos poderosos da terra, a aprestá-los em nichos apaziguadores. Nem se pode julgar, como alguns petistas, que indivíduos faltaram à fé jurada. Traídos foram os eleitores: em vez de estadistas com projeto político, receberam burocratas autoritários e subservientes, com típica vocação de "aparatchik".
Esses atores encenam a decadência da democracia, invertendo, em suas condutas, valores básicos. Assim, a reforma da Previdência -rápida em confiscar funcionários menores ou mal representados, célere em ceder a corporações fortes como a magistratura ou o Ministério Público- é dita corajosa, por romper "privilégios", quando de fato, pusilânime, expropriou indefesos.

A covardia torna-se bravura. Outra pirueta nessa área, onde os saldos positivos do sistema alimentam o inexorável "superávit primário": o excedente converte-se em "rombo".
Idênticas inversões permeiam as negativas de corrupção. Todos repelem as acusações, para logo serem desmentidos por testemunhos ou fatos. Todos exaltam suas façanhas: lutas épicas contra a ditadura, por José Dirceu, proezas macroeconômicas, por Palocci. As glórias passadas ou os brilhos presentes justificariam os males escondidos. O vício transforma-se em virtude, o réu converte-se em herói.
O ardil da negação absoluta ("nunca", "jamais") repete-se na entrevista de Palocci, que contesta ter firmado contratos -citou dois- favorecendo uma empresa de lixo. Seriam anteriores à sua administração. Ao asseverar essa impossibilidade, elidiu um terceiro ato, relativo à mesma empresa, assinado em seu governo. Argüido por tal silêncio, alegou (via assessores) que se calara porque o contrato não fora "objeto de questionamento". Neste caso, a falsidade não está no explicitado, mas no omitido: a mentira converte-se em verdade.
Relações venais de poder organizam esse campo de forças, mediante procedimentos legalizados, "transparentes", dentro da normalidade. Nessa pantomima de honradez entranha-se a conduta perversa: saquear o país, empobrecer e despolitizar o povo, destruir esperanças, distorcer direitos constitucionais, como promete a "flexibilização" trabalhista. Mais inversões: prega-se a caridade (Fome Zero e outras mercês) e pratica-se a inclemência, cortejam-se grandes interesses. A conivência com estes municia, no mínimo, o caixa dois. No desenlace desses processos, como em tempos coloniais, esvai-se a riqueza, drenada para canais exóticos.
(*)Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular aposentada dos departamento de filosofia da Unicamp e da USP, é autora de, entre outras obras, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Editora Unesp).
NOTA: Artigo publicado originalmente para o Caderno Mais!, da Folha de São Paulo, em 18/09/2005.



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19 setembro, 2005
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