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Esse blog é destinado a promover o debate de temas culturais e sociais, além de divulgar as ações realizadas por jovens moradores da comunidade São Remo, no bairro do Butantã (SP).

segunda-feira, setembro 19, 2005


A IMPLOSÃO DA REPÚBLICA
O governo Lula atualiza a forma de poder tradicional do Brasil, própria do capitalismo no país, em que o dinheiro e as relações pessoais se entrelaçam para saquear a nação, "empobrecer e despolitizar o povo"

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO (*)

Powerful" Brasil: epíteto de nosso país, entre outras nações submetidas às estratégias mundiais de hegemonia político-econômica, expostas em recente livro sobre a "corporatocracia" norte-americana (John Perkins, "Confessions of an Economic Hit Man", Barrett-Koehler, 2004).A novidade, nesse relato, é que seu autor descreve, no sistema de mando que liga sigilosamente centros internacionais de decisão e quadros domésticos coadjuvantes, a destreza em desferir golpes -projetos técnicos superdimensionados, provisão de recursos excessivos, corrupção, lavagem de dinheiro, suborno, proxenetismo, colapso de governos, repressão organizada, assassinato- em benefício de mandatários privados conexos a poderes públicos.

Favores e dinheiros entretecem essa rede.
As técnicas de controle político-econômico reeditam, com empréstimos insaldáveis, a astúcia de prover fiado para escravizar a passos perdidos. "Desenvolvendo" iniciativas custosas -parques industriais, usinas de energia, sistemas viários, redes de telecomunicações, portos e aeroportos, complexos mercantis, agronegócios, empreiteiras, empresas petrolíferas, complexos exportadores, bancos-, os Golias transnacionais e seus acólitos nativos maximizam os ganhos e reduzem à indigência o povo restante.
A preeminência do sistema financeiro, nessa linha, propeliu ao infinito a concentração de riqueza. O dinheiro aplicado nunca sai, de vez, do país de origem, voltando acrescido. Este conto, "se non è vero, è ben trovato": oferece uma visão conjunta dos fenômenos e dá sentido a evidências aqui reiteradas.
A cultura da fraude, mundo afora, confirma essa crônica de misérias. Na Alemanha, vista pela Transparência Internacional como uma das nações menos corruptas, escândalos financeiros abalam negócios estatais e privados. Proxenetismo, propinas e subornos mesclam-se a delitos como a lavagem de dinheiro por bancos de comércio e empresas de telecomunicações ou, na indústria, como o suborno de líderes sindicais, obsequiados com férias e prostitutas em troca de apoio trabalhista para corte de custos.
Neste caso, a investigação atingiu alto executivo da indústria e assessor do governo em um plano de reforma econômica que afrontou a classe operária alemã. Esse funcionário demitiu-se, negando seus malefícios (Jeffrey Fleishman, "Corporate Corruption Rattles Germany", "Los Angeles Times", 24/8/ 2005).

Ciranda infernal
O termo "Poderoso Brasil", acima, aparece na estratégia para manter a supremacia americana no continente, sem referência aos programas porventura a nós destinados. Uma só alusão é feita ao Rio de Janeiro e aos contatos com os "agitadores" locais. Embora dissimuladas, essas práticas deixaram indícios de nossa participação em sua infernal ciranda. Seus marcos aqui subsistem.
Desde o governo Dutra, passando por JK e pelo "milagre econômico", crescentes dificuldades e continuadas situações recessivas levaram ao labirinto de créditos, dívidas, usura, derrama, confisco, retumbando a exigência de forte ajuste fiscal e aperto monetário visando "estabilizar" a economia, com o Fundo Monetário Internacional no horizonte.
Com Fernando Henrique Cardoso, as privatizações legitimaram o pleno direito de passagem pelos encraves de bens públicos, notadamente com a cessão de negócios estatais lucrativos e com o socorro a bancos, eximindo-se das atribuições básicas do governo. Este guardou os seus segredos e manteve as aparências de fé pública. Dólares e euros, desde então, acotovelam-se nessa cornucópia.
O confisco do patrimônio público cresceu, férreo, com Lula. O clichê justificativo das decisões financeiras repete o gárrulo refrão: "Estabilidade da economia". Equilíbrio "em favor de quem e para fazer o quê" é a pergunta que se opõe às certezas abstratas, cuja resposta, nesse caso, aponta para o saque da riqueza produzida no país. Os juros excessivos e tributações exorbitantes infletem para o inexorável "superávit primário" destinado a "honrar" as dívidas que, pagas às expensas do cidadão e à custa de suas carências, foram contraídas sem controle civil de sua gênese ou fins.

Palocci
Esse teor abstrato sela a entrevista coletiva de Antonio Palocci, alardeando os "fundamentos sólidos da economia". Sua autojustificativa consagra o "mercado tranqüilo", as grandes exportações, os agronegócios prósperos, as estatísticas oficiais dóceis e escamoteia a indústria lesada, o comércio parado, o desemprego renitente, a pobreza contumaz, as lacunas em educação e saúde, e por aí afora. O elogio da "economia", abstraída de outros campos, funda o discurso que "blinda" Palocci e Lula, sem que se aponte as forças que a mantém e o limite de seus resultados ou se atente para as decorrentes exclusões e queda nos níveis vitais. Reside exatamente aí, na apropriação lesiva de recursos alheios confiados a eles em virtude do cargo, no monopólio do poder para a pilhagem do povo, a mais formidável corrupção, aberta e legalizada, que implode a soberania da República. As demais violações, superlativas ou mesquinhas, são resultados.
O circo de improbidades que assistimos é, pois, historicamente definido nas condições presentes, as quais encontraram, porém, solo fértil em nossa ética política, afeita à mistura entre público e privado e pródiga nas correlatas vantagens. O amálgama entre dinheiro e favor, forma de dominação peculiar à gênese do capitalismo no Brasil, vigora sempre.
O atual governo e seu partido reeditaram as formas de poder que entrelaçam moeda e relações pessoais. No PT, a cobiça de recursos partidários e a modéstia dos bens particulares, face aos custos eleitorais e às promessas do poder, abriram as portas ao subterfúgio: cavar negócios, dar e receber, pedir e tomar. A cupidez subjetiva completa o quadro. Condutas desse jaez promovem explorações nas franjas da ilegalidade (lixo ou bingo), com sua dupla face, voltada para o partido e para seus dirigentes.
Mas Janus complicou-se: em algum ponto, projetos políticos e ambições individuais pactuaram com estratégias econômico-financeiras de porte mundial. As dívidas contraídas nesses acordos são remuneradas à custa do "poderoso Brasil": riquezas imensas e trabalho colossal nutrem o fantástico "superávit primário" que seduz os patrocinadores do poder, vicariamente exercido por seus empregados, nossos governantes. A "economia" não é absoluta, jamais pode ser ou não ser "contaminada" pela política: ela "é" uma política, cujos benefícios não abarcam o indefinido Brasil da oratória oficial, mas limitam-se a grupos precisos.

Sem razão
A burocracia petista, nas atribuições oficiais, esvaziou-se até mesmo da racionalidade constitutiva desse aparato: inexiste hierarquia eficaz, especialização de funções e cargos, competência profissional, eficiência, fins institucionalizados. Os quadros do governo, com poucas exceções, são impermeáveis ao objeto que administram. A burocracia assim vivida é inapta para o Estado, indiferente ao saber, estéril.
Lula, ícone desse contra-senso, louva a ignorância e encarece o analfabetismo num universo dominado pelo conhecimento. Palocci compõe um exemplo mais circunspecto. Ao rebater a denúncia de propina, declarou jamais ter contemplado outro "negócio" que o serviço público.
De fato, seu período médico é parco (5 anos) face à carreira de político profissional: vereador (aos 21 anos), deputado estadual e federal, presidente do PT paulista, coordenador de campanha, ministro. Sua formação técnica escapa ao cargo que hoje ocupa.
Daí o infortúnio desse grupo: os Delúbio, Berzoini, Gushiken, Dirceu, Genoino, Lula, pouco ou nunca se empenharam em criações materiais ou do espírito, presos à máquina do partido ou sindicato e a um poder inane, atento em seduzir a todos, dos miseráveis aos poderosos da terra, a aprestá-los em nichos apaziguadores. Nem se pode julgar, como alguns petistas, que indivíduos faltaram à fé jurada. Traídos foram os eleitores: em vez de estadistas com projeto político, receberam burocratas autoritários e subservientes, com típica vocação de "aparatchik".
Esses atores encenam a decadência da democracia, invertendo, em suas condutas, valores básicos. Assim, a reforma da Previdência -rápida em confiscar funcionários menores ou mal representados, célere em ceder a corporações fortes como a magistratura ou o Ministério Público- é dita corajosa, por romper "privilégios", quando de fato, pusilânime, expropriou indefesos.

A covardia torna-se bravura. Outra pirueta nessa área, onde os saldos positivos do sistema alimentam o inexorável "superávit primário": o excedente converte-se em "rombo".

Idênticas inversões permeiam as negativas de corrupção. Todos repelem as acusações, para logo serem desmentidos por testemunhos ou fatos. Todos exaltam suas façanhas: lutas épicas contra a ditadura, por José Dirceu, proezas macroeconômicas, por Palocci. As glórias passadas ou os brilhos presentes justificariam os males escondidos. O vício transforma-se em virtude, o réu converte-se em herói.
O ardil da negação absoluta ("nunca", "jamais") repete-se na entrevista de Palocci, que contesta ter firmado contratos -citou dois- favorecendo uma empresa de lixo. Seriam anteriores à sua administração. Ao asseverar essa impossibilidade, elidiu um terceiro ato, relativo à mesma empresa, assinado em seu governo. Argüido por tal silêncio, alegou (via assessores) que se calara porque o contrato não fora "objeto de questionamento". Neste caso, a falsidade não está no explicitado, mas no omitido: a mentira converte-se em verdade.
Relações venais de poder organizam esse campo de forças, mediante procedimentos legalizados, "transparentes", dentro da normalidade. Nessa pantomima de honradez entranha-se a conduta perversa: saquear o país, empobrecer e despolitizar o povo, destruir esperanças, distorcer direitos constitucionais, como promete a "flexibilização" trabalhista. Mais inversões: prega-se a caridade (Fome Zero e outras mercês) e pratica-se a inclemência, cortejam-se grandes interesses. A conivência com estes municia, no mínimo, o caixa dois. No desenlace desses processos, como em tempos coloniais, esvai-se a riqueza, drenada para canais exóticos.

(*)Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular aposentada dos departamento de filosofia da Unicamp e da USP, é autora de, entre outras obras, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Editora Unesp).

NOTA: Artigo publicado originalmente para o Caderno Mais!, da Folha de São Paulo, em 18/09/2005.

1 Comments:

Blogger Unknown said...

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19 setembro, 2005

 

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